01/08/2017

Querida Cadillac

    É com carinho e uma leve dose de preocupação, que redijo esta crítica. Não questiono suas qualidades ainda vigentes, tampouco sua renomada e versátil capacidade técnica, longe de mim! Meu descontentamento é com sua reincidente ociosidade de potencial; inclua-se aqui a perda aparente da lendária ousadia, de que hoje se servem os "luxorollas" petulantes, que almejam ser seus concorrentes. Eles aprenderam rápido, mas cento e quinze anos de experiência não se conseguem na faculdade. Ser ousada e manter o bom gosto é para quase ninguém. É para você!

    Peço com apreço que não corra o risco de ficar embaçada como sua irmã, que Leland fundou com o mesmo carinho dedicado a você, para que fosse sua real concorrente e até sua parceira de aprendizado, mas perdeu completamente o viço de outrora. Sua triste irmã foi convencida a termo de que seus carros eram exagerados, até impróprios para os tempos vigentes; algo que os ingleses provaram ser inverdade. Ela apequenou-se neles e, logo em seguida, a si mesma, desaparecendo no mar de concorrentes apelativos que surgiram nas últimas décadas, a ponto de hoje não ter mais a mais remota ligação com o que justificava sua existência, que era ser sua contrapartida. Ela nem mais sabe ao certo quem é, está acanhada, tentando se reencontrar.

    Não quero isso para você. Não quero que suas tentativas de retomar a glória dos anos dourados, se dêem em vão, mas para isso você precisa, minha querida, voltar a se comportar como você mesma. Você não é uma moça na multidão, com roupas de grife cara cortadas segundo os ditames da moda, maquiagem seguindo as tendências, trotando pelas ruas como essas modelos modernas. Não, Cadillac, você não deve se reduzir a essa escassez existencial. Você é grande demais, é maior do que sua estrutura de revendas, do que suas fábricas, maior até do que a companhia de que faz parte. Você é a estrela da companhia, é o norte dos engenheiros, é de você que dependem os progressos de todas as outras marcas que te acompanham, quiçá mesmo de algumas concorrentes.

    Desde 1902 a multidão é que some à sua presença, não deveria ter deixado de ser assim! Seu porte altivo, quase arrogante, mas de modos afetuosos com os que leva consigo, ignorando mesmo as pistas mais mal acabadas, destemida e confiante é que se destaca e ofusca tudo ao redor. Não perca isso!

    Você não segue modas, minha querida. Você é muito mais significativa do que elas! Você lança modas, e as modas que você lança nunca saem de moda, não se importe com as maledicências dos despeitados que pregam o azedume e a vulgaridade, eles mentem para si mesmos a fim de justificarem suas existências supérfluas! Sua existência, Caddy, ela sim é necessária! Foi por sua causa, após um luto amargo pelo desfecho trágico de um acto de cavalheirismo, que as pessoas aos poucos não corriam mais o risco de quebrar um braço ou até morrer, tentando dar partida no carro com uma manivela. Você salvou tantas vidas, que nem se pode calcular quantas! Só por você existir!

    Suas maquiagens sempre foram harmônicas, mesmo quando por contraste, com sua compleição avantajada e opulenta. Você não combina absolutamente em nada com a moda vigente de exaltação às doenças da anorexia e da obesidade mórbida. A sua imagem sempre passou ostensiva e subliminarmente a mensagem de vigor e longevidade, de vida longa e próspera. E longevidade, minha amiga, é algo de que você entende muito bem! Seus modelos rodam macio e silentes mesmo aparentemente caindo aos pedaços, mesmo com falhas na manutenção, mesmo apesar do mundo corrosivo no qual esta qualidade os fez adentrar. E como chamam atenção, mesmo cercados de contemporâneos! O mundo suspira, quando você passa! Então é você que deveria continuar a ditar tendências, sem escondê-las debaixo da ficha técnica.

    Mesmo em seus piores momentos, quando parecia que as imitações baratinhas tomariam seu lugar, você nunca descuidou-se de sua elegância! Enquanto as outras se rendiam à maré, você ainda se valia de sua lendária força de vontade para manter-se firme em seu caminho, apesar de cambaleante. Lembra-se? Foi você lançar um modo todo novo no olhar e rapidamente ser copiada, de forma descarada, pelos "luxos" de custo/benefício. O termo "luxo" se manteve em seu comportamento apesar de tudo, enquanto as outras subvertiam e até pervertiam a palavra para se referirem a brinquedos e novidades tecnológicas, estas que sempre e rapidamente migram para classes mais baixas, desvirtuando assim a proposta original. O seu cabedal, pelo contrário, sempre foi o do refinamento, da elegância leve e descomprometida, do toque agradável e da experiência de ter em movimento a maciez de uma poltrona feita sob medida para a sala de leitura.

    Mesmo vindo da nobreza francesa, fidalga de longa linhagem, você jamais foi esnobe com plebeus, pelo contrário! Eles sempre encontraram na Caddy, como passaram a chamá-la carinhosamente, o mais alto padrão sem que isso significasse chamar mão de obra do outro lado do mundo, só para trocar uma tampa de válvulas. Você sempre foi uma abastada humilde! Isto nenhuma de suas rivais jamais se prestou a ser. Já tentou enfiar a mão para trocar uma vela de uma delas? Um horror! Mesmo conduzindo gente humilde, você faz as pessoas se sentirem flutuando, dando a uma classe média a sensação de conforto que as outras só dão aos muito ricos. Não deixe esse legado tão valioso se perder!

    O motivo maior de minha preocupação é que você ainda demonstra sentir as conseqüências dos tempos amargos. Você está mirando baixo, Caddy! Você pode muito mais do que isso! Foi por sonhar cada vez menor, que sua irmã se perdeu. Ela não vai conseguir se reerguer enquanto você não o fizer, porque sempre foi em você que ela se espelhou, como o mundo inteiro se espelhou um dia. Eu sei, há uma rusga continental entre vocês, mas ela foi adoptada por outra família, ela não escolheu isso, assim como você não escolheu a sua.

    Sonhar pequeno ou grande, minha querida, não torna o esforço menor ou maior, só torna maior a frustração de não ter conseguido o sonho acanhado, pois ele parecia ser mais exequível; até a culpa pelo fracasso é maior por ele. Quem se frustra pelo sonho grande, pelo menos tem o alento de suas dimensões e dificuldades, e o aprendizado que grandes sonhos sempre dão; mas nem por isso se deve desistir deles.

    Da mesma forma, a própria fauna automotiva de suas terras provou que seus carros não eram exagerados cousa alguma! Aproveitamento de espaço interno? Ok, é sempre bom se aperfeiçoar, algo que você sempre fez com muita rapidez. Mas não há mal algum em optimizar o espaço de dois por cinco metros, a não ser para os despeitados que não têm competência para fazer cabines realmente espaçosas. Isso você sabe fazer até melhor do que suas correspondentes britânicas, porque exclusividade de classes nunca fez parte de sua philosophia. Exclusividade, na sua cartilha, sempre foi para suas inovações e personalizações.

    Não, minha querida, o mote de que mais é menos não se aplica a tudo. Principalmente se ele significar a infelicidade e a perda de personalidade, ainda mais a sua personalidade tão forte e marcante! Ela faz falta! Muita falta! Sim, eu sei, você voltou a ser distinguida de longe, pelas pessoas, das outras ao seu redor, mas ainda não é aquilo que você sempre foi sem esforço. Você deve, pelo menos nisso, dar ouvidos às suas amigas inglesas e deixar os patetas de lado. Você não é exagerada, eles é que são medíocres! Você é o que você mesma se fez, e nunca deveria ter aberto mão de ser grandiosa e inspiradora.

    O seu público não quer tanto que você supere as outras, quer que supere a si mesma, que deixe de ter e passe a ser a referência. Você não deve se acanhar e oferecer mais do que os outros, deve oferecer tudo o que pode, como sempre foi! Alguns de seus fracassos se deram justamente por isso, por se nivelar por baixo. Deixe a média para a Chevy, é ela que briga bem nessa categoria, ela pode rodar apenas 30 milhas só com as baterias, por agora lhe basta! Deixe o segmento superior para a Buick, porque sua briga no território dela a está sufocando. Ofereça o máximo e o melhor! O seu básico deve deixar o topo dos outros lá em baixo! É isso que você sabe e deve fazer.

   Ainda me lembro quando estive a poucos metros de uma de suas meninas mais simples, a XT5. Esperei em vão para ouvir o suave ruído do motor, porque ela partiu sem sequer murmurarem os pneus! Mesmo ela compartilhando a plataforma com a menina da Chevy! Parecia ser eléctrica! É isto que seu público espera de você! É você que deve ditar onde está o topo, não almejar chegar a ele! É a isso que me refiro quando falo em sonhar grande, porque você sempre foi o sonho maior, mas de uma hora para outra resignou-se a um papel de "premium" que está muito aquém de sua majestade imperial! A Boo é premium! Você é luxo! A única coisa que te impede de voltar a andar lado a lado com a inglesa, é o medo pelos traumas persistentes!

    Quer se inspirar? Inspire-se nela. Você sabe fazer o que ela faz, e sabe fazer em maior volume sem perder o padrão! Lembre-se de que seu norte nunca foi a exclusividade, foi sempre a personalização do cliente, mas sempre dando a gente comum o direito a sonhar com ela. Sonhar com os pés no chão não significa sonhar menor, significa assumir ser a gigante que você é, sair da posição de joelhos e pôr-se de pé, erecta, altiva, encantadora e até intimidadora como nunca deveria ter deixado de ser. A sua cabeça sempre deixou as nuvens para baixo, ponha-se novamente de pé!

    Você não pode continuar a simplesmente brigar com custos, quando há um público que só recorre à inglesa porque você a deixou sozinha no pedestal. É esse público, não os detratores, que paga por você! Quem desdenha seu passado glamoroso não te aceitaria nem que você oferecesse micros de 3 metros! Compreende? Não é uma Cadillac menor que eles querem, eles querem o fim da Cadillac e de toda a era de esperança e abundância que ela representa. Quem te quer, quer em todo o seu esplendor e dignidade. Se a inglesa trabalha bem com um V12, você trabalha bem com um V8. Por que a vergonha? Sua competência sobra para alimentar oito bocas sem deselegâncias!

    Vamos, minha amiga, levante este rosto lindo, dê aquele sorriso triunfante que sempre precedeu de longe a sua chegada e seja você mesma! Ninguém é feliz na medida do possível, da mesma forma como não se é feliz no sonho alheio. Os seus adeptos não querem o sonho medíocre dos que têm medo de se assumirem ocidentais! Eles querem ter e espalhar pelo mundo o que o ocidente tem de melhor! Para eles, ansiosos pelo seu retorno ao trono que lhe é de direito, você é o modelo, o padrão, a meta e o sonho. Pelo menos por eles, Caddy! Faça isso!

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