12/09/2009

Prefiro o alfaiate

 
  Eu iria tratar de um tema denso, penoso e periclitante, mas estou com uma ligeira depressão, muito cansado e a cabeça em frangalhos, então falarei de algo mais ameno até me recompor.

  Há um ou dois meses doei minhas camisas pólo. As últimas pret-a-porter que eu tinha. Mais precisamente, há anos que não compro roupa pronta, faz quase uma década que não visto jeans. Só uso roupas feitas (ou ajustadas) pelo meu alfaiate. Não custa mais que uma roupa de loja de boa qualidade, só não tem o apelo do status que uma etiqueta badalada oferece, mas isto é algo que não me interessa.

  Quando há algum problema de costura, vou falar directo com o dono da confecção, no caso, da alfaiataria. Quando alguém vê algum problema em uma roupa pronta, fatalmente terá que ouvir "Bem-vindo ao Serviço de Atendimento ao Consumidor, sua ligação é muito importante para nós, aguarde uns instantes enquanto te enfiamos nossa propaganda com uma musiquinha horrorosa, que em seguida alguém da empresa terceirizada vai atendê-lo". Lá vai a conta telephônica para a estratosphera até alguém te atender "Senhor, nós estaremos estando te passando um número de telephone, para que o senhor esteja estando ligando para o departamento de produção". Com o alfaiate eu resolvo o problema sem burocracia.

  Ganhei em maio uma camisa, que de cara ficou grande. Tenho ombros largos, mas sou baixo, acreditei que bastaria cortar os muitos centímetros excedentes. Pois quando ele cortou para um funcionário ajustar, me mostrou o quanto um lado era maior do que o outro. Fico espantado em saber que as pessoas se vestem muito mal, mesmo escolhendo um modelo correctamente. No manequim fica um luxo, quando sai á rua é um luto. As mais bem cortadas até que não são ruins no primeiro uso, mas assim que vai lavar, as pendengas aparecem. A maioria das confecções não molha o tecido, mas muitos tecidos encolhem após a primeira lavada, especialmente os com algodão. Não bastasse isto, a linha da costura geralmente é sintética. O tecido encolhe, a costura nem tanto, e a roupa que parecia ser de bom gosto se torna uma fantasia de circo; juntas enrugando, costura desfiando, botões entortando, tinta se soltando, o tecido ficando áspero, et cétera. Só então a pessoa lê a etiqueta e descobre que o que foi barato de comprar é caro de manter, pois exige condições específicas e difíceis de se obter para lavar. Pret-a-porter que valha a compra é cara, muito cara. Algumas são caras e não valem a linha de costura, mas roupa pronta boa raramente não é muito cara.

  Já viram lojas oferecendo ternos a preço de blusão vagabundo? Vou lhes contar o truque; eles são cortados às dezenas de uma só vez, com um só molde e costurados em velocidade super sônica. Já estou vendo o dia em que vão passar cola industrial em vez de linha, para acelerar a produção. Os problemas desses ternos: a parte inferior de trás é sempre fechada, não tem a fenda que te permite se sentar, se movimentar e subir uma escada sem ficar parecido com o Robocop; O forro, quando o tem, mais parece retalho de pano-de-prato, alguns usam descaradamente o não-tecido, que gela no inverno e assa no verão; Por ser molde único para milhares de peças, ele não vai te servir, se ficar bom no ombro vai parecer um vestido, se ficar bem no comprimento não vai entrar sem rasgar; Em poucos dias de uso os problemas vão aparecer, como botões caindo, costura se desfazendo, bolinhas se proliferando e o tecido ficando lustroso como se tivesse sido encerado e polido, entre outros. Fora a assimetria que a maioria apresenta, um horror. Sai mais barato fazer um traje de gala do que mandar consertar, é sério.

  Ternos e afins são tão complicados, que quem os faz é chamado de "oficial", quase sempre alguém de idade madura e com muita experiência. Com seiscentos reais se faz um terno para receber a rainha da Inglaterra; com mil reais para consertar, o terno de R$199,99 não fica tão bom. É um baratinho que sai custando os olhos da cara, pois precisa ser substituído com grande freqüência.

  O Zé, assim que separa um tecido com fibras naturais para cortar, leva para casa e deixa de molho, para encolher antes de começar o trabalho. Só que isto leva algum tempo, artigo muito caro para as indústrias. Mas para ele é só um cuidado, principalmente para clientes como eu. Sou assimétrico, meu lado direito é mais musculoso de nascença, sou largo e baixo. As medidas vendidas em lojas nem de longe servem em mim. Sempre fica a impressão de que o defunto era maior.

  Não me lembro mais como é vestir um jeans, mas lembro do tecido batendo nos calcanhares a cada passo que eu dava. A modelagem mais justa das roupas femininas atenua muito esse incômodo, mas não sou mulher e não tenho saudades daquela peça armada feito um sino de algodão, badalando enquanto eu andava. Quando passei a usar somente calças sociais, senti a diferença dramática. Elas não batem no corpo, tremulam. Posso usar o corte confortável que me agrada sem medo de aparentar flacidez. Quando passei a usar somente calças feitas sob medida, não quis mais voltar. Mesmo as mais simples são peças que posso usar em qualquer ocasião, pois foram feitas para mim, para minhas formas completamente fora de molde.
Minhas roupas têm tecido suficiente para o caso de eu engordar, embora nunca tenha precisado desse artifício. Roupas prontas, para aproveitar ao máximo a matéria-prima, são moldadas por computador, ocupando cada centímetro da fazenda e barateando os custos, mas também eliminando a possibilidade de uma gestante continuar usando suas roupas por algum tempo, assim que a barriga despontar será um novo guarda-roupas. Cresceu? Engordou? Engravidou? Sem chances, é roupa nova.

  No caso das crianças, a roupa pode ter sobre tecido bastante para permitir ajustes por uns bons anos, um alívio no orçamento da família. Além de atenuar os efeitos da cultura do descartável, tão nefasta para o ambiente e para a mente da criança.

  O acto de ir encomendar uma camisa tem mais benefícios do que o econômico. Vendo de onde, como, quando e por quanto vai sair a roupa, cria-se um vínculo e se dá mais valor ao bem adiquirido. Não é como uma camiseta que um cara que nunca vi colocou no cabide da loja, sem que eu tenha visto. Eu fui à alfaiataria, conversei com o alfaiate, escolhi o tecido, defini o que gostaria ou não, tirei as medidas e combinei o preço. Quando pronta a camisa, lá voltei, experimentei, vi se não precisava de algum retoque e, aprovada, paguei e levei comigo.
Parece trabalhoso, talvez seja um pouco trabalhoso, mas é um trabalho que compensa. Vale à pena ter um vínculo por algo mais do que "é legal" ou "tá na moda".

  Algumas das minhas peças têm muitos anos de uso diário, pesado. Estão inteiras. algumas com sinais do tempo e das circunstâncias, mas em perfeitas condições de uso. Não tenho roupas de festa, tudo o que compro é para a labuta árdua de um trabalhador honesto, que acima de tudo é honesto consigo mesmo.

3 comentários:

Nik disse...

É a história - aqui muito bem contada - da camisa com CPF, no caso, do alfaiate. As camisas com CNPJ, são isso mesmo: ruins, desconfortáveis, caras. Minha luta é com os sapatos. Melhoraram muito no Brasil nos útiumos 20 anos, mas ainda tropeço (!) em uns por aí que desmantelam a coluna. Haja Arcox depois.
Abraço, Nik.

Newdelia disse...

O alfaiate é algo sensacionalmente personalizado. Nada como ser único vez ou outra.
Digo isso pois todos meus vestidos de festa são feitos pela minha mãe até hoje. Nunca gastei um centavo com roupas finas, nem quando debutei ou me casei, que são ocasiões especialíssimas e poderia ter gasto uma fortuna.
Você, com eu já sabia, é um homem fino por natureza. Quem duvida?
Beijos

Nanael Soubaim disse...

Nik, também procuro desesperadamente por um bom sapateiro.

New, sou bem menos fino que tua sensibilidade.