23/08/2008

Onirautas VI; A roupa sumiu!

Bem-vindos a mais uma onirisséia. Oferecimento: Audrey Beathan; Seja feliz, pague mico você também.

Um tipo de sonho recorrente é a nudez, parcial ou total, voluntária ou não. A maioria gosta de ouvir e imaginar, mas quem conta raramente compartilha da opinião. Lembremos que Elvis e um elefante cor de rosa não cabem no porta-malas de um Fusca, lá mal cabem malas! A natureza não é estúpida de produzir um fenômeno só para repassar as cenas do dia, os neurônios não precisam desse desgaste para se organizar, bastam testes rápidos quando o sujeito adormece, gastam menos energia.

Nudez é exposição. Numa sociedade que exige que todos sejam extrovertidos, seguros, bem resolvidos e pemanentemente bem-humorados, asseguro que noventa por cento da população têm algum grau de timidez, os outros dez têm algum problema que ignora. Por isso mesmo as pessoas se incomodam quando sonham que estão nuas.


  • Primeiro porque a nudez acontece de surpresa, quando menos se espera: Pum! A roupa some. Se há deformidades no corpo, ou uma parte com proporções e/ou beleza acima da média, é aquela que será destacada. Aí o maior fanfarrão do mundo fica rubro.

  • Segundo porque nunca estamos sozinhos, nesta situação. Mas nunca mesmo. Assim que baixamos as calças para mandar o barroso, as paredes somem e uma multidão se aglomera para nos observar.

  • Terceiro porque acontece quando mais precisamos, no sonho, nos concentrar. Como em uma reunião, quando o chefe te diz "Que mordida é esta no teu mamilo, Márcia?". Então a mesa inteira some, a cadeira some e te obriga a ficar de pé e pelada. Terrível, não?

  • Quarto e último, porque nudez ainda é tabu. Imaginem uma carola sonhar que está ajudarndo na missa e, quando vê, está pelada e maquiada na frente de toda a comunidade. Ela vai querer morrer, vai meter a cabeça na parede e se penitenciar, quando acordar.

Claro que, quando acordamos, podemos até cair na risada, de alívio, pra depois tomar como piada e, quem sabe, rodar uma comédia fadada ao sucesso; se não for a carola, é claro. Mas na hora a areia mais fofa vira concreto e não temos onde nos esconder.

Isso tudo é insegurança. Como isto aqui não é horóscopo de jornal, que é o mesmo que consultar um oftalmologista por telephone, não farei interpretações genéricas para vender auto-estorvo. O que eu disse acima, se lido direito, pode ajudar cada um a identificar qual o seu problema e relatar ao profissional de saúde mental, que é a pessoa qualificada para elucidar cada caso.

Ajuda seguir as dicas da primeira onirisséia, como não ver tevê com menos de uma hora de antecedência ao sono, não beber refrigerante após o jantar, não comer qualcousa pesada á noite, não ouvir músicas(?) de baixo calão, et cétera. Mas, uma vez que a peladice está evidenciada, respire oniricamente três vezes e continue a fazer o que estava fazendo. Tenhas certeza de que se tu não deres importância, os outros também não darão. Mas isto só vale para os sonhos, se tu tiras a roupa em praça pública e me responsabiliza pelas conseqüências, vou aí e te dou um cascudo. Não fiquem pelados fora dos sonhos se o ambiente não for propício, a hipocrisia ainda predomina e quase ninguém sabe lidar com o próprio corpo, imaginem com o corpo alheio. Se lhes der na tete, unam-se, comprem um bairro, murem-no e deixem as aves soltas, perus e periquitas certamente vão gostar, mas só dentro dos muros deste bairro, como em sonhos.

16/08/2008

A morte merecida

Seis anos. Não foram seis horas ou seis dias, mas seis anos. Seis anos agüentando alimentação parenteral, sondas em lugares pudentos, fora as piadinhas levianas dos médicos, pensando que estava desacordado. Enfia droga, tira tecido, enfia sonda, tira sangue, enfia agulha, tira saliva... Isso doía. Tanto no corpo quanto nos brios. O tratamento era pior do que o dado às cobaias. Primeiro porque cobaia é criada para ser cobaia, segundo porque o Peta e o Green Peace estão em cima para coibir abusos, terceiro porque cobaias não pagam para serem humilhados. Aquele tratamento era caro! muito caro.
Trabalhou duro a vida inteira, sem murmurar, educou os filhos como lhe foi possível e agora é tratado como um objecto de laboratório. Já se cansou de ouvir "A pipa do vovô não sobe mais" cada vez que alguém examinava seu pênis. Como nenhum aparelho acusa reações significativas, salvo espasmos a cada choque eléctrico, simplesmente decretaram e tomaram como verdade absoluta que não sabe absolutamente nada do que se passa ao seu redor, apesar de já terem estudado casos que desmentiram a sentença.


Claro que não enxerga, ou daria sentido à expressão "Se olhar matasse", nem consegue se expressar, ou já teria mandado todo mundo enfiar nos próprios aqueles aparelhos volumosos que lhe enfiam regularmente no ânus. Sem dó, como se fosse uma cousa.


Aliás, já ouviu claramente médicos comentando que, embora não precisasse, o laboratório pagou uma boa comissão para incluir nos soros uma droga nova, caríssima, e que lhe estava dando azia. Sim, azia, há mais de dois anos que lhe enfiam aquilo no soro, sabendo que não é necessário e não tem a mínima chance de reverter o quadro.


Lhe dói imaginar como a esposa está arcando com tudo aquilo. Enquanto estava lúcido, soube que os filhos estavam raspando suas poupanças para custear um tratamento que, hoje sabe pelos próprios açougueiros, não trará seu controle de volta. Não teve tempo para demovê-los, na mesma noite a droga ultra-higth-tech-nanomolecular foi adicionada ao soro e a pituitária faliu, seguida pela metade do córtex. O repouso que um médico ayurvedista recomendou? Crendice! Ninguém jamais comprovou em testes artificiais de laboratório, então não funciona e que vá para a fogueira quem acreditar.


A esta hora seu neto, ou sua neta, deve estar aprendendo a ler. Chora por dentro porque não conseguiu acompanhar a gestação da filha mais velha, nem a formatura do caçula, nem festejou as bodas de prata. Bastaria ter passado longas férias em Blumenau, como lhe fora indicado primeiro, mas tinham que convencê-lo a ver um "médico sério". Um açougueiro, isto sim! Um balconistazinho de drogaria que não vende crac porque seria pêgo.


Três filhos criados, uma casa paga com muito sacrifício, e agora está reduzido a um organismo para treinamento de novos açougueiros. Pior, sua família está pagando para isso, acreditando que estão é tentando salvá-lo. Na verdade é um exemplar perfeito para os testes que lhes rendem fábulas, fora os honorários. Já testaram cinco drogas clandestinamente, todas arrebentaram com seu sistema imunológico, mas como está incapacitado e não podem interferir, não haverá processos nem perda de registros de medicina.


Mas uma certeza lhe consola, quando a morte vier, ahá! Quando ela vier, a festa acaba. Sofreu demais na vida, seu organismo já estava debilitado há muito tempo, não vai agüentar muito mais tempo, então as máscaras caem. A necropsia vai mostrar as falcatruas e sua família terá que ser ressarcida.
Um dia, não mais que derrepente, começa a abrir os olhos. Vê com uma clareza imensa. Uma mulher muito refinada se aproxima, imagina que seja a nova médica, apesar dos trajes de festa..
- Boa noite, Valter. É hora de te dar alta.
- Graças à Deus! Eu não agüentava mais, doutora!
- Nós sabemos. Levante-se.
Consegue se levantar com muita facilidade, mais do que quando deu entrada no hospital...
- E os outros médicos?
- Não são mais problema para você.
Valter olha em volta e vê seu corpo. Tem um início de confusão, pois está respirando, ouvindo, sente o calor e tudo mais. A dama o acolhe e explica a situação, que suas preces foram atendidas e que ele não precisava passar por aquilo. Mostra-lhe um fio que estremece e se solta de sua nuca. A aparelhagem começa a apitar infernalmente, no que uma equipe enorme invade a UTI e faz de tudo para evitar o que já aconteceu...
- Então eu morri? Mas e a Mirtes? E os meninos?
- Serão amparados. E terão de volta tudo o que investiram aqui.
- Então você é a morte? Mas te pintavam tão feia!
- rs, rs, rs... Se prefere ver assim, sou a tua morte. Cada um tem a que faz por merecer e nenhuma fortuna pode comprar outra diferente. Vê aqueles monstros? São as deles, e não tardam a reclamar sua paga.
Enquanto os doutores de colunas sociais e palestras em Harvard se desesperam, tentando não perder a galinha dos ovos de ouro que já perderam, Valter sai com sua condutora, seus pais o esperam.

09/08/2008

Não merecemos!


Quando o Itamar quis o Fusca retomar, uma multidão aguardava ansiosa pelo 1303, sua versão mais modernosa. Mais espaço, mais conforto, estabilidade e tudo mais. Preço também mais salgado, mas não importava, pois o Fusca já tinha passado da idade de ser carro de entrada, merecia ser modernizado.

Mas que decepção quando vimos a falta de respeito, em 1993, ele ser reapresentado daquele jeito. A mesma carroceria de 1967, retocada, mas no tempo parada. Alegaram que ficaria caro, mas pergunto se pobre tira carro da loja, a não ser como motorista. Basta ver as ruas abarrotadas de Fuscas com injeção electrônica, turbo, rodas de liga, bancos de couro e outros quetais, que renderiam à concessionária cinqüenta mil ou mais reais.

Hoje, a maioria não sabe, mas o Santana ainda é fabricado, tanto na versão quadradinha (bem baratinha) quanto na redondinha, com chassi alongado e melhor equipado. Onde? Desesperai-vos, taxistas, é na China que eles conduzem as visitas. Aliás, dois dos poucos carros chineses que não desmancham quando batem. Sei bem o quanto vocês gostavam do Santanão robusto e espaçoso, mas creio que importar seria muito oneroso.

Vocês me perguntarão o motivo de estes três modelos não recebermos. Bem, é que não merecemos. Nos acomodamos ao que querem nos dar, pelo preço que querem cobrar e compramos sem reclamar. Desde que as importações declinaram, as novidades também minguaram. Nos deram um Astra para substituir o Vectra, este muito superior em estabilidade e aerodinâmica; maquiaram o 206 e adicionaram 1; fabricam por cá o Mercedes Classe C, mas é só para exportar, quem quiser comprar tem que raspar a poupança e as taxas de importação pagar.

Estas são apenas algumas das atrocidades que cometem com a nossa permissão. Sabe-se lá a que situações os empregados de firmas terceirizadas são submetidos para reduzir os custos, mas nem sempre os preços.

Alguns vão gritar contra, dizer que tudo está mais moderno e avançado. Balela. Nos dão restos do banquete que dão no hemisphério norte, só mandam projecto cansado. Acham que melhor não merecemos.

Gosto de modelos antigos, confesso. Tenho simpatia de ver o Uno, Palio e Punto juntos em uma mesma revenda de carros novos. Para quem não sabe, o Punto substituiu o Palio, que substituiu o Uno, na itália. Talvez seja a única montadora que não me decepcionou efetivamente, até agora. Mas também poderia estar fazendo melhor.

Voltando ao 1303. Quando lançaram a Brasília (para mim é uma perua, ponto final), ficou claro que a população estava disposta a pagar mais por um Fusca melhorado, e o 1303 ainda estava findando a produção. Dificuldade técnica? nenhuma. Só política interna mesmo. Pois sabemos que um bom propagandista vende o que quiser, sabendo apresentar. Aliás, a Kombi, nesta época, quando foi remodelada, passou a dispor de uma suspensão que a fez ficar muito mais estável, foi inclusive aplicada na Variant II, mas o que queríamos ficou de fora.
A Chamonix conseguiu resolver o problema de emissões, nada que qualquer boa oficina não possa, ficou claro. Não com investimentos bilionários, só com competência e vontade. A mesma que faria a alegria dos taxistas. Imaginem o que eles não fariam com os recursos de uma multinacional.
Mas nós não merecemos. Desde carros até programas de televisão, passando por biscoitos e achocolatados, pioram a qualidade de tudo sem nos consultar e sem sequerer reduzir os preços. E nós aceitamos. Podem melhorar a qualidade da montagem, com isso o carro dura uns anos mais, mas se estragar, pode jogar fora. Nem tente abrir o capô, não vais conseguir nem checar as velas, tarefa antes banal até para leigos. Pifou? Joga fora, o conserto vai custar caro.
Poderíamos ter carros com a frente toda basculante, mas não merecemos. Afinal nem do que gostamos tomamos partido. Nem reclamamos quando tiraram o Opala Coupé de linha, e ele respondia pela maior partes das vendas do modelo. Então toda a linha Opala saiu de linha por "quedas acentuadas nas vendas".
O que eu faço quanto a isto? Boicoto. Mas é um boicote solítário de alguém que não costuma fazer compras vultuosas, então fica sem força. Ainda que reconheçam que eu tenho razão no que reclamo, e quem se deu ao trabalho de me ouvir reconheceu, eu faço tanta pressão quanto uma placa de isopôr no mar morto. Eu sei que eu mereço, mas como indivíduo. Quanto à coletividade, nós não merecemos! Não mesmo.
Agosto está quase virando e logo a Simone começa com "Então é nataaaaaaaal!..." Pensem no que cada um de vocês realmente merece, antes de gastar seu suado dinheirinho, ou a mesada que papai e mamãe dão com tanto carinho. Muito provavelmente, se for um carro, um modelo fora de linha vai agradar muito mais.

30/07/2008

Ética prática



Todo mundo fala em ética. Todo mundo exige ética... dos outros. Pois todo mundo diz que ninguém é ético e quem não seguir a correnteza é trouxa.


Eu poderia me perder em divagações redundantes sobre a origem da palavra, o conceito primitivo e toda uma etimologia completamente supérfula. Seria até divertido, teria o aval dos catedráticos, mas não seria ético. Eu estaria pleiteando glórias em detrimento da missão que me foi confiada. Vão cinco regrinhas pragmáticas que qualquer um pode praticar.


Primeira regra - Faça consigo o que gostarias de fazer ao próximo. Que foi, bem? Achaste que eu iria dar a velha e surrada regrinha de "Faça ao próximo o que gostarias que lhe fizessem"? Não, primeiro experimente o teu remédio, depois dê para que experimentem. Se te der vontade de esganar alguém, siga estas instruções: Peque uma gravata ou encharpe longa, dê uma volta no pescoço, segure firme as duas pontas e estique fortemente os braços para os lados, agora tente respirar. Viu como foi didático? E ainda pudeste se livrar da agonia para colocar a lição em prática. Decerto que nem tudo precisa chegar a este termo, mas com a prática as idéias homicidas desaparecem, chegará o momento em que a dor do outro vai repercutir em ti, então já estaremos conversados.


Segunda regra - Não faça com o outro o que ele não quer que seja feito, mesmo que gostarias que fizessem contigo. Pensa bem, filhote, tu gostas de rock da pura, de balada da mais fina categoria, falou que é de turma lá estarás tu. Mas há gente que gosta da solidão. Eu sou assim. Muito mais gente do que imaginas é assim. Aquilo que te faz falta, pode ser justo o que o outro tem em excesso e do que queira se livrar. Se queres agradar, então se informe a respeito dos gostos e necessidades do próximo. Quase sempre a presença amiga é suficiente, pois há pessoas que não gostam de receber presentes, o que não é o meu caso, mas conheço alguém. Por mais que te dê espasmos, alguém no mundo gosta de musiquinhas melosas e diabéticas dos anos 1920/30, e desde que não invada o teu espaço, deves respeitar.


Terceira regra - É teu? Não? Então não ponha a mão. Parece tão óbvio! Mas quase ninguém acha que só uma olhadinha com a mão trará problema. Mas traz. Há gente metódica, que tem na organização de seu ambiente um elo com a sanidade, e pessoas realmente metódicas percebem alterações milimétricas em tudo o que têm. Não se enganes, não é frescura, e se for não é da tua conta. Também há cousas que parecem com as do cotidiano, mas podem ser instrumentos específicos e difíceis de se conseguir, ninguém conhece todas as artes e ciências. Vale o ditado dos antigomobilistas: Carro antigo é como mulher de amigo, tu admiras, mas não põe a mão.


Quarta regra - Dê o exemplo. É aqui que a porca torce o rabo! É seguramente a mais difícil de todas. Pense na cena: Uma mulher com roupas caras, óculos caros, batom que compraria todo o estoque de uma boutique popular, sapatos de couro de Dragão de Komodo albino, laquê artesanal montado molécula por molécula por um laboratório exclusivo, jóias confeccionadas para a Rainha Claópatra, et cétera. Um nojo de chique. Agora imagine essa senhora abrindo uma embalagem de chiquete, começando a mastigar feito ums ruminante e jogando o papel no chão, sem nem olhar. Tem muita gente pobre que guarda seu lixinho no bolso até encontrar uma lixeira pública. Vale o mesmo para o trânsito e tudo mais; se sabes que mereceste a multa, pague. É teu direito recorrer, mas pagando e não reincidindo, vais ensinar ao teu filho que nem tudo o que é permitido é lícito. Se ele aprender esta lição contigo, em vez de aprender na escola chata e depredada, vai querer imitar e até ensinar aos amigos. Tua ação tão simples pode dar mais frutos do que imaginas.


Quinta regra - Não confunda tolerância com indiferença. Muita gente que chega do exterior fala da tolerância que existe no "primeiro mundo"... Dá licencinha... RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ... Voltemos ao caso. Muita gente que imigrou do "primeiro mundo" me conta outra história, diz que se alguém morrer na rua, só removem o cadáver quando começa a incomdar a coletividade com o mau cheiro. Eles não toleram a diversidade e a liberdade individual, eles simplesmente não se importam com o próximo, mesmo que o outro esteja à beira de um suicídio. Campanhas internacionais, tudo bem, pois estão agindo em prol de uma causa, mas danem-se as pessoas. Longe de aconselhar que alguém bedelhe a vida alheia, se importar com a situação do outro não é invasão de privacidade. Não penses que se interessando por um drama familiar, serás mal visto, salvo se o sujeito for um cafageste que espanca esposa e filhos. Pergunte como vai, se disponibilize para uma eventual ajuda e isso será o suficiente para o outro não se sentir totalmente sozinho. Será um potencial suicida a menos, ou um potencial surto psicótico a menos. Com o tempo, infelizmente pode levar muitos anos (talvez décadas), os frutos virão, tanto para os outros quanto para ti.


Isto não é tudo, mas é o mínimo básico sem qualquer opcional, nem rádio AM-FM. Mas é o bastante para começar. Se ao menos tentares, mesmo sabendo que vais falhar muito, já estarás melhorando o teu mundo. Se mais alguém vai seguir, é problema deles, a tua parte já está sendo feita.

19/07/2008

A mulher que amarei



Não quero uma mulher melancia. É cousa que, quando boa, se come a polpa e depois lança-se ao lixo, ou à compostagem que é o correcto. Além de ser mais incômodo do que mala, para carregar.


Não quero uma mulher mamão. Já tenho um intestino muito bom, só me serviria para ter diarréia, se estivesse madura, ou fazer compotas, caso estivesse verde. Mas estando verde, seria pedofilia; não, obrigado.


Não quero uma mulher filé. Não como carne vermelha. Ainda que comesse, só dura se congelada lá nos cafundós do freezer, o que a tornaria inútil, se fosse aproveitar teria que preparar e consumir rapidamente. Sendo bovina, há sempre o risco de conter hormônios em excesso, o que me exporia descenessáriamente ao risco de um câncer escorpiano.


Também não quero galináceas, piscianóides, plastificadas ou qualquer outra bobagem mercadológica feita para erigir falos. Para forçar à compra de porcarias que demandam pouco investimento e vendem rápido. Ideal para lavagem de dinheiro ou outra mutreta qualquer.


Quero uma mulher que vá ao banheiro ao menos uma vez por dia, soltar os barros. Talvez até que tenha um pouco de TPM, de vez em quando. Depois pode chorar sem motivos. Para quê? Será tão bom sentir seu corpo se apoiando em mim!


Uma mulher que não esconda que precisa de maquiagem, quando aquela espinha ainda nova aparece. Ser despojada não é sinônimo de ser desleixada.


Uma mulher que fique de mau humor, em vez de planejar um adultério, mas também que mande os pudores aos raios que os partam quando estiver com o fogo aceso. Que saiba ser respeitosa até de shortinho e bustiê.


Uma mulher que seja uma rainha na lida com as visitas, mas não se furte o direito de expôr a lavadeira quando alguém tentar dizer como devemos educar nossos filhos, que a decoração está fora de moda, que não se usa mais aquele modelo de calças... Sempre há um parente chato querendo ser mandado à casa do chapéu.


Uma mulher que tenha sabido aproveitar o frescor da adolescência, bem como saiba transformar em marco cada marca que a maturidade lhe der. Mulheres de verdade sabem que envelhecem, mas se cuidam em vez de tentar aparentar quinze anos, depois da menopausa.


Quero uma mulher de verdade, que seja bela como é, da base ao ápce. Que não coloque um quilograma de silicone em cada seio para chamar atenção, ou esconder a falta de conteúdo. A boca trai os vasos encerados.


Quero uma mulher que saiba sorrir sem constrangimentos, chorar sem vergonhas, andar leve como quem anda com os pés no chão. Que troque sozinha a lâmpada da sala, mas não se envergonhe em me chamar para matar uma barata.


Quero uma mulher que seja maravilhosamente comum no formato do rosto, linda em sua simplicidade cotidiana, não preciso que outros a achem linda também. Se tiver uma beleza acima da média, que esta se reflita nos olhos, pois eles não mentem. Que seja bela por completo, não por partes.


Não precisaria usar vestidos rodados, sei que são pouco práticos. Tampouco precisaria ter mil e quinhentas receitas de bolos e biscoitos de memória, eu cozinho bem.


Não precisa tocar piano, cantar ou ter algum talento hipertrofiado, não busco uma artista para agenciar. Mas se souber, serei o primeiro a fundar um fã clube.


Quero uma mulher honesta, de carne e osso, que chore por bobagens e solte arroto. Que diga que "hoje não, estou com dor de cabeça". Que aceite me acompanhar na caminhada longa e íngreme que todo homem honesto enfrenta. Que me dê colo quando eu cair exaurido, também que não esite em pedir o meu.


Uma mulher de verdade não é como garrafa de refrigerante, cujo conteúdo se encomenda a um químico qualquer e o casco se rotula nos dissabores da moda. Uma mulher de verdade não admite isso. Tem respeito por si mesma.


Uma mulher de verdade comete gafes, aprende com elas, come biscoitos de chocolate às escondidas e diz que na segunda-feira começa com a dieta.


Uma mulher de verdade suporta com coragem a enfermidade mais grave, mas se dá o direito de gritar estridente quando o esmalte descasca.


Uma mulher de verdade, quando o homem não presta, é a bruxa que se escondia sob a pele da elegante madrasta má. Mas quando ele merece, sabe ser a própria Grace Kelly. É tão encantadora e sofisticada quanto discreta e singela.


Uma mulher de verdade não se vende, mas se derrete quando o sujeito toma homência, pede para terem uma conversa e mostra as alianças que comprou com sacrifício.


Uma mulher de verdade pode ser a mais brava das amazonas, mas se transmuta na mais doce donzela quando ouve, sem motivos aparentes e sem aviso prévio, "Eu te amo".


Quero uma mulher de verdade, à quem possa perguntar sem medo: "Quer se casar comigo?".


Quero uma mulher de verdade, que não esconda a paixão de adolescente pelo Ronnie Von, pelos Menudos, que já tenha sonhado em ser a Patrícia Pilar para beijar o Tonny Ramos.


Poderia dizer que não quero uma mulher perfeita, mas estaria mentindo. A mulher que descrevi é perfeita. Aliás, mais-que-perfeita. O que quero com frutas rebolantes? Aquela que me arrastar para o altar fará comigo tudo o que os idiotas, com o devido respeito aos verdadeiros portadores de idiotismo, sonham fazer com os bifes sacolejantes que infestam programas de auditório.


Aquela que aceitar me tolerar e dividir comigo uma cama, salvo quando me mandar dormir no sofá, não precisará contrair lordose para chamar minha atenção, o lento desabotoar de uma blusa fará isso muito melhor e sem estragar a coluna. Ignorarei minhas constantes e violentas cefaléias para consolar esta mulher, quando a unha quebrar.


Ainda que não a mereça, esta mulher sabe dar valor ao homem que tem. E quando toma as rédeas da casa, o progresso é certo.


Um dia, quem sabe, talvez eu publique aqui um texto inspirado no meu casamento. Mas só depois que encontrar esta mulher. Toda mulher que se dê ao respeito é perfeita. Fruta eu compro na feira.

05/07/2008

Lafassigal


Um país muito pequeno, porém próspero.

A República Educativa de Lafassigal seguia com suas dificuldades e soluções, como acontece com qualquer nação. Suas demandas eram razoávelmente atendidas e seu povo vivia em relativa paz, mas uma paz frágil. Haviam setores politizados em Lafassigal, dentro destes haviam os partidarizados, os que constituíam a verdadeira ameaça.

Certo dia, um grupo de gente bem intencionada, mas meio ingênua, implementou tantas cousas a olhos vistos, gerando tamanho contentamento, que despertou ciúmes dos inimigos políticos. A ingenuitade tenaz dos camaradas organizados, não permitia antever que a baixeza alheia seria capaz de prejudicar uma comunidade inteira, apenas para ver seus desafetos caírem. Só que eles não sabiam que eram desafetos. Houveram discussões, sim, mas isso há em toda democracia.

Por D'us que era gente honesta e ordeira, incessantemente trabalhando comunitariamente e organizadamente, sem fins lucrativos. Ocorre que as eleições em Lafassigal se aproximavam, e um dos membros dessa boa gente se candidatou, para poder fazer mais sem se preocupar tanto em dar satisfações desnecessárias. Mas não há eleição com candidato único, e os inimigos se declararam. A gente honesta já tinha implementado toda uma condecorável organização, uma estrutura que já atendia à comunidade por inteiro e produzia frutos doces, para quem quisesse provar.

Vocês conhecem um pouco de política? Então sabem que as éticas são muito deturpadas por uma percentagem muito grande dos políticos. A politicagem aconteceu, denúncias falsas foram feitas, provas forjadas e tudo o que os próprios detratores apregoavam, antes do pleito, foi jogado às traças.

Eles, que se vangloriavam de participar de uma facção que lutou contra uma ditadura severa, hoje agem como aqueles ditadores. Na base da trapaça e se aproveitando da ingenuidade do povo de Lafassigal, fizeram tudo igual ao que juraram combater... e ganharam as eleições.

Incólumes trabalhadores de cada ordem, porém, nossos amigos continuaram a trabalhar naquilo a que se propuseram, sem demonstrar abalo. Ingênuos. A politicagem não tem lado, seja qual for o radicalismo. Estourou um escândalo, os cartões republicanos, criados para desburocratizar o cotidiano de Lafassigal, foram usados em proveito próprio, como um segundo e muito mais polpudo salário, pelos vencedores (?) do pleito. Eles bradavam contra a corrupção, hoje se corromperam, pois os métodos baixos são como uma droga, quem os pratica uma vez se sente tentado a praticar sempre. Longe de se sentirem abalados, os membros da situação forjaram outra maracutaia e, sem um poingo de verginha, jogaram no grupo honesto a culpa de tudo, inventando ainda outras acusações. Nada foi provado, absolutamente nenhum indício sério foi encontrado.

Tarde. os incrivelmente talantosos e criativos obreiros foram punidos, se não como os corrompidos queriam, com a perda de toda a estrutura erguida, que hoje está às moscas. O povo de Lafassigal ficou sem seus benfeitores?

NÃO!!! De jeito nenhum! Ocorre que o mundo é vasto e eles encontraram outro lugar para erguer outra estrutura, longe da sanha corrompida dos pseudo heróis, estes nada mais do que saudosistas de uma ditadura que os permitia ser irresponsáveis como queriam.

Imaginem o que querem, pois é na imaginação, tão combatida pelos materialistas, que os sonhos mais sinceros começam, e por ela eles se desenvolvem.

Tramem o meio de realizar, pois um planejamento bem tramado dá sustentação para qualquer ambição lícita, mesmo as mais delirantes e aparentemente surreais.

Continuem com a empreitada, pois os inimigos contam justo com tua desistência para te colocarem um pelego e, aos poucos, se tornarem seus senhores.

Organizem suas idéias. Sabendo o que fazer e quando fazer, os imprevistos terão um impacto muito menor, ainda que gente desonesta se aproveite de teus tropeços.

Nossos heróis não são ficção, o que relatei aconteceu, mas romanceei tudo para que não haja margem para represálias e, principalmente, para que sirva de lição também para as eleições que se aproximam, como para tudo mais na vida. Atentem aos que trapaceiam aqui, pois quem aqui o faz, lá faz igual.

10/06/2008

Noite em claro

Já não se importa se ganha pouco, se mora mal, se deturpam tudo o que diz. Só suspira.
O ar que entra pela janela é frio, mas não muito. Decide sair. Quem tem medo de assaltos? Já teve há até uns meses, mas todos os dias dezenas de pessoas são agredidas por marginais, às vezes por nada, os jornais são provas disso. Mas não conhece um só que tenha sido vítima de algo pior, então a possibilidade de ser... Ah, ao inferno! Se tiver que morrer assassinado e não sair, alguém entra na casa pretextando roubar o computador. Sai sem o celular mesmo. Nem sabe se ainda tem carga, faz quase uma semana que não chama nem liga. Mais um suspiro e sai.
Fazia tempo que não saía depois das vinte e duas horas. Mais tempo do que pode se lembrar. Só se lembra das luzes de natal, que via na infância. Hoje só por televisão, que também está há dias sem funcionar. Não está quebrada, só não quer ligar mesmo. Quer ficar realmente só e a solidão do apartamento estava se tornando uma companhia incômoda.
Engraçado ver tanta gente sorrindo e namorando! Pelo que ouvia, todos deveriam estar encolhidos e mantendo, no mínimo, um metro de distância da criatura mais próxima. Mas essa alegria vai desaparecendo, ele imerge em sua solidão voluntária e continua andando. Sem rumo, sem horário, sem compromissos, só segue.
Faz tempo que não namora. Também faz tempo que não tem interesse em namoro. Na verdade faz tempo que não se interessa por cousa alguma.
Já cogitou o suicídio. Mas a razão, mesmo sua razão atéia, o chamou para um canto e colocou tudo em pratos limpos. Ainda que morresse dormindo e fosse para o vazio inexistencial, seu sofrimento não acabaria. Mesmo inconsciente o corpo transmitiria de alguma forma a agonia da morte prematura e, sendo a última cousa a sentir, caso não haja mesmo uma vida pós-túmulo, essa agonia seria eterna, pois nada mais haveria além dela. Não, a agonia que sente já é horrível o bastante. Quer ter a chance de acabar com ela, o que por agora não consegue.
Aha! Beleza! Começou a chover! E daí? Só está com documentos e um cartão de crédito e débito, é tudo plástico, não vai estragar.
A chuva ensopa aos poucos sua roupa de tiozão. Calças pretas (de alfaiate) com riscas-de-giz, camisa pólo branca com um bolso, sapatos de amarrar e meias no mesmo tom de preto. Deixa de se importar quando a cueca também ensopa e os cabelos conspiram com o temporal. Segue. É tudo matéria morta mesmo, não vai gripar. Se o corpo gripar, então consegue o tempo de que precisa para meditar sobre sua vida. Nem sente o banho de lama que um ônibus lhe dá. Até porque o aguaceiro limpa tudo depressa.
Se olhasse ao redor, não saberia dizer onde está, mas com certeza nem se importaria. Não há marginais agindo sob o temporal, não há gente apressada atropelando sob o temporal, não há ninguém além dele andando no meio da rua, feito um maluco, sob o temporal. As luzes dos postes são suas únicas testemunhas. Testemunhas arrogantes, diga-se de passagem.
Há uma ameaça de demissão. Duas décadas dedicadas àquela empresa e um menininho, um fedelho ainda cheirando a cocô, vem acusá-lo de atrapalhar a companhia. Pois amanhã se demite. Chega meia hora mais cedo, vai ao departamento de recursos humanos e volta para casa. Os relatórios acumulados? O directorzinho "emebeático" não se acha o suprassumo da humanidade? Então que se vire. Aquele salário já não paga há anos as agruras que lhe custa. Quando vai ao banco, em vez de extrato, o caixa electrônico lhe dá um atestado de pobreza. Não foi por falta de lutar, esse remorso ele não leva ao túmulo. Tudo o que estava ao seu alcance, tudo o que poderia ter feito para subir na vida, ele fez. Exceto usar os outros como escada. Talvez tenha sido isso.
As pessoas não gostam de gente boa e honesta, chegou a esta conclusão faz alguns meses. Todos reclamam de todos, da corrupção, da má educação, do jeitinho maldito, da desconsideração dos outros para com o próximo e tudo mais. Mas o que acontece quando aparece um homem honesto? É trouxa. Sai daqui, perdedor! Homem bom só serve para levar chifres e pagar contas. Todos querem que o mundo tenha gente honesta, mas a uma distância mínima de cem metros. Honestidade incomoda, faz os podres aparecerem.
Há alguém ouvindo "Solitaire" por Karen Carpenter. Então ele pára para ouvir. Sua vida é mais ou menos isso, só que não quer jogar sujo. Sente-se em um filme noir branco-e-preto. Mas nenhuma estrela de cinema vai aparecer na chuva para abraçá-lo. Na verdade, nem precisaria ser famosa, nem mesmo popular. Nem sabe do que precisa, mas sabe que tem a ver com aquela música.
Vê uma movimentação logo à frente e por ela é visto. Nem tinha notado o fim da chuva, talvez por ainda estar ensopado feito macarronada da nonna. Uma moça se aproxima e oferece uma toalha. Não vê seu rosto, mas naquela momento é a mulher mais linda do mundo, simplesmente porque se importou consigo. O grupo o acolhe e lhe dá uma sopa. É só o que têm, mas ele nem tinha fome, come por gratidão. Vê gente miserável sendo servida sob o viaduto, provavelmente aquela é a única refeição de muitos deles, naquele dia findouro. Nem sabe como, mas aquela moça vai puxando conversa e ele acaba falando tudo, até o que não sabia que tinha a falar. Também não sabendo como, acaba se enturmando e ajudando. Afinal não é um desabrigado. Pode se manter no apartamento por uns três meses até conseguir outro emprego, pois o actual está definitivamente descartado de sua vida. Ouve um "Obrigado, meu filho" de uma boca banguela, não sabe dizer se é idosa ou idoso, sabe que foi o primeiro agradecimento que recebeu em anos. Novamente alguém toca Carpenters, com "Sing". Aprendeu inglês suficiente para saber do que a música trata e canta junto.
Mas que diabos! Saiu na esperança de desaparecer e deixar de existir, agora está feliz da vida! Pô, Deus! Ele nem acredita em Vós e vais se metendo assim na vida dele? O que quereis? Que ele seja feliz? Estais agora fazendo que confie em gente religiosa? Justo quem mais o decepcionou? Para quê? Ele tem muito medo de se decepcionar de novo! As pessoas foram muito cruéis com ele! O usaram como apoio e o descartaram assim que se reergueram!
Porque Meu filho trouxe até Mim a cruz que lhe pedi, ainda que sob provações torpes que não coloquei em seus ombros, Eu lhe dou a Minha Paz. E um emprego novo, pois também de pão vive o homem.
Ah, o raiar do Sol. Desde os dezoito anos que não via o Sol nascer! O Sol nasceu.