Não sei se vocês já se deram conta de o quanto
tornou-se arriscado contrariar uma pessoa. Os mais desatentos podem acreditar
que a estafa mais freqüente se deve aos tempos difíceis que atravessamos, bem é
também isso, mas não é só isso; é verdade, mas não é toda a verdade, não é nem
a península da verdade. Encontrar um adulto que não veja uma discordância ou
negativa como ameaça de morte está se tornando uma tarefa inglória. Várias
vezes eu falei de adultos se portando como crianças mimadas, pois a coisa
piorou muito, o mimo de querer atacar e não tolerar ser atacado tornou-se
pandêmico. Não, as redes sociais não inventaram isso, o problema é antigo e já
abordei em outros textos, a parcela delas desta empreitada medonha é a
catálise, são enzimas que fazem tudo parecer muito maior do que realmente é, o
que não seria um grande problema se todos os adultos tivessem feito dezoito
anos, mas muitos não fizeram. A bem da verdade, a mim parece que a maioria nem
fez dezesseis. O agravante é o facto de, admitam ou não, os adolescentes
imitarem os adultos ainda que em modo reverso, daí vocês podem imaginar a caca
que sai.
Do meu ponto de vista (não opinião, mas PONTO
DE VISTA, a posição em que me encontro em relação aos acontecimentos) vejo
pessoas até então ponderadas e sensatas, que levavam no deboche e risadas as
contrariedades cotidianas, começarem a se levar a sério e contrair as moléstias
inerentes, como repetir compulsivamente discursos alheios e não se darem conta
da carga de rancor e ódio que recebem com isso, um veneno que vai fazer doer
cada vez mais e tolher progressivamente suas capacidades de discernimento. Um
exemplo é de uma pessoa por quem ainda nutro muito carinho, cuja consciência
dos riscos e burrice das generalizações parecia ser uma apólice de seguro, mas
hoje vem justamente seguindo e compartilhando opiniões de pessoas que
generalizam descaradamente contra os que considera ser seus inimigos, afirmando
que TODOS os de um grupo ou outro são absolutamente maus ou absolutamente bons,
claro que com outras e prolixas palavras, a mesma prática de radicais
religiosos para controlar seus seguidores e, em última instância, perseguir os
que tiverem os estigmas do mal. Essa novela é repetida e eu já a vi
literalmente milhares de vezes, em muitas delas vários capítulos exibidos
simultaneamente… e continuo a assistir a essas reprises tóxicas. Para essa
pessoa, agora, todos os indivíduos do grupo que seus mentores desgostam, são
previamente julgados e condenados, sem o menor traço de investigação e sem
querer saber os nomes dos bois; é aquela gente, então deve ser odiado.
Não se trata apenas de política, essa erva
daninha enraizou em praticamente todos os campos. Vá, por exemplo, dizer que
prefere sedãs familiares aos esportivos e verá uma legião de ofendidos por tu
não babares por Lamborghini e Ferrari, tentando te fazer confessar crimes não
cometidos. Isso é só um exemplo e já me aconteceu. O que agrava esse fenômeno
quando se trata de política, é a imensa quantidade de apelos sentimentais e
humanitários que os gurus da área despejam o tempo todo, mas para os quais na
vida real não dão a mínima, basta ver os heróis que e porque eles cultuam. São
pessoas para as quais, a medida em que se radicalizam, a vida do outro perde
valor se estiver do outro lado da discussão, e com o tempo esse outro já nem é
mais visto como ser humano. Recentemente um contato causou problemas
deliberadamente em vários grupos e perfis, caçando briga por políticos. Eu
estranhei ele trocar de perfil apenas dando pequenas mudanças no nome, ao longo
dos meses, mas faz poucos dias que o flagrei ameaçando processar quem o
xingasse, que era precisamente o que ele estava fazendo com os simpatizantes de
outra corrente, ou quem simplesmente não concordasse com a dele. Não precisei
investigar muito para descobrir que ele simplesmente saía pelo facebook
procurando discordantes com o firme propósito de atacar, ridicularizar,
humilhar os outros e fazer troça de qualquer sofrimento de que tomasse
conhecimento. Agora, praticamente isolado, queima carbono com postagens de
indirectas.
Quando se faz engenharia reversa do histórico
dessas pessoas, se descobre que aos poucos, com maior ou menor ímpeto e
velocidade, elas abandonam a busca de notícias dos factos, o que convenhamos
tem se tornado cada vez mais difícil, para buscar publicações que corroborem
com as narrativas adoptadas; as semelhanças com igrejas fundamentalistas não
são mera coincidência, a estrutura funcional é a mesma. Muitas vezes essas
pessoas gostam de compartilhar coisas como “Não gostou, passa por cima e
esqueça” mas praticam o oposto na primeira oportunidade, naturalmente, como se
nada de errado estivesse acontecendo, algo como “Oi, dei um murro na sua cara
agora há pouco, vamos sair pra tomar um sorvete”. Claro que se o murro for na
deles, o convite será rispidamente rejeitado, mas na situação oposta eles vêm discursos
prontos de reconciliação e tentando incutir culpa à menor reação contrária,
como crianças pirracentas. Aliás, pirraça parece ter se tornado a ideologia
oficial do país, com as pessoas se recusando a ver as qualidades do opositor e
aprender com elas, bem como fechando os olhos para as mazelas dos seus,
novamente se valendo da polarização extrema com um raciocínio simplista,
versando com amplitude sobre a superfície da água. A redução da capacidade de
discernimento não é, entretanto, responsabilidade exclusiva deles, existe toda
uma estrutura patológica suportando comportamentos imaturos e egocêntricos. Já
faz algum tempo que as pessoas têm se deixado ser tratadas como mentalmente
inaptas, e o primeiro fornecedor dessa droga foi o telejornalismo, que com
técnicas de locução apresenta primeiro a sua conclusão e depois a notícia
editada ao sabor de seus interesses, assim não importa o que tiver sido
apresentado, a tendência do espectador será aceitar a conclusão prévia. Nas
versões impressas as técnicas são outras, como deixar para um último e tímido
parágrafo o outro lado ou o complemento da notícia, já sabendo que as pessoas
têm ficado preguiçosas para ler o que não lhes der prazer.
O tolhimento do raciocínio para tirar
conclusões e tomada de decisões tem cobrado seu preço, que é repassado à vítima
já viciada e os que a cercam, como acontece com qualquer cadeia de tráfico de
drogas. A proliferação de programações idiotas e idiotizantes, muitas vezes com
frágil aparência cultural, é um dos reflexos disso. Decerto que a actividade
partidária se beneficiou disso. O efeito colateral é a progressiva estreiteza
do raciocínio, com as pessoas se recusando a cogitar o que quer que não esteja
em sua zona de conforto intelectual, com o tempo comprometendo até mesmo a
fluência linguística. Eu tenho testemunhado em pessoas próximas um
empobrecimento vocabulário acentuado, tanto verbal quanto escrito e, meu Deus,
como meus olhos doem de ter que ler certas coisas! Algumas sequer consigo
decifrar! O excesso de emojis e gifs ajuda a dar uma idéia do que a pessoa quer
dizer, e medir o grau de infantilização a que já está exposta, mas mesmo isso
já está falhando, com figurinhas que nada têm a ver com o assunto sendo
colocadas como resposta ou complemento da…
aham… comunicação. Não me refiro a pessoas de baixa formação escolar, há
pessoas com pós-graduação ou mais contaminadas com isso. Gente diplomada com
severas restrições de vocábulo e nenhuma capacidade de interpretação de texto,
quando muito recorrendo a citações memorizadas para maquiar a deficiência, tem
saído em profusão das academias. Agora imaginem a deterioração linguística da
população comum, que mal lê um parágrafo por dia. Adultos cronológicos que desconhecem palavras básicas da língua portuguesa, que mal conseguem se comunicar fora de seus territórios, que podem mal cobrir a área de um bairro.
Nas redes sociais isso é muito amplificado e
tanto mais quanto maior a interatividade. Conflitos por motivos torpes com “Vá
se f@d3r filho da p¢t4” tomando o lugar do “bobão cabeça de mamão”, usando de
argumentação do mesmo nível, enchem as caixas de comentários. A situação ficou
ainda mais pesada quando a turma de visão rasa cheia de referências começou a
querer ditar o que cada um deve pensar, se achando a escola do mundo, assim
soltar “a coisa tá preta” pode custar vinte e quatro horas ou mais de banimento
por acusação NUNCA INVESTIGADA de racismo. Às vezes nem terá sido o
interlocutor o denunciante, mas o contacto do contacto do contato que conhece
alguém que tem um contacto mais radicalizado e este tomou as dores que não
foram sentidas, bem como julgou e condenou o autor como réu revel. Nem quer
saber se houve intenções, em que contexto a expressão foi utilizada e nem mesmo
que já faz parte do cabedal popular, Tico e Teco decidiram que aquilo é o mal
absoluto e deve ser exterminado. E a gerência da rede social, o que faz? Isso,
censura! Como é humanamente impossível analisar milhões de casos diários,
deixam por conta de um algoritmo a ingrata tarefa de adivinhar o que o cidadão
está pensando, quando na verdade nem é capaz de diferenciar um cotovelo de um
seio. Mas as contas de ditaduras que em seus países baniram essas empresas,
essas estão a salvo de qualquer represália.
E para o gargalhar dessas mesmas ditaduras,
tanto ao algoritmo quanto os censores humanos aceitam qualquer birra como
denúncia, às vezes até uma letra digitada errado como prova para censurar uma
publicação. Ter dois adultos usando palavreado mais rústico para conversar, já
é motivo para punições mais severas. A impressão que fica é que eles querem que
nos tornemos todos Pollyannas, que só postemos coisas belas e agradáveis (não
sei a quem) o tempo todo, que só escrevamos palavras carinhosas e
enternecedoras, não importa o estado de espírito em que a pessoa esteja, como
narrou o filme “O Demolidor”. Essa tutela forçada com censura de pensamento tolhe
ainda mais o discernimento, já que haveria alguém para pensar e concluir no seu
lugar; ou, pelo menos, haveria, se os próprios censores não fossem enviesados e
simpatizantes de ditaduras, posto que não as punem, portanto com pensamentos
também tolhidos. O resultado é a infantilização dos adultos, que respondem em
duas principais frentes opostas e igualmente perigosas, uma aceitando usar
fraldas e chupetas, outra tentando ser mais ogra do que queixada faminto. No
meio, tentando sobreviver, temos dois tipos, o que ainda não se deu conta da
desgraça que está acontecendo, mas sabe que não gosta do modo como tem sido
tratado, e o que acompanha desde o começo essa degeneração, e não raro tem
crises depressivas. Os infantilizados são a maioria, estão brincando de adulto
e levando a ferro e fogo os seus brinquedos, enquanto adolescentes maldosos
conduzem a brincadeira, evitando a qualquer preço que aqueles tentam contato
saudável com o mundo adulto, repetindo o mantra “o mundo é mau, ninguém presta
e ninguém vale nada” em seus ouvidos puerilizados. Assim, quando buscam uma
notícia, já têm em mente o que querem saber e não toleram resultados
diferentes, como se a realidade fosse obrigada a se moldar às suas
expectativas, tal qual criança mimada de cinco anos. Já se apresentam a autores
de algo que não tenham gostado de espírito armado e dedo em riste, acusando
previamente e mandando estudar aquilo só o fazem quando corresponde ao que
esperam saber.
Vocês notaram que os carros estão cada vez mais
parecidos com brinquedos Hot Wheels? Que os esportivos parecem cada vez mais
terem sido feitos com origami? Não é coincidência, é conseqüência. Se antes
havia o medo de envelhecer, hoje o medo é parecer ter mais de trinta anos,
porque a partir dessa idade não se é mais formalmente jovem e a coerência de
atitudes passa a ser cobrada com rigor… ou passava, antes de ser socialmente
aceito um marmanjo de quarenta se comportar como um púbere que tomou seu
primeiro porre. Andar balançando lateralmente já foi sinal de problema
ortopédico ou tontura, hoje caminhar como um bebê trombando em tudo e em todos
é considerado normal, e ter a mesma reação de um ao ser contrariado também é. E
do que uma criança pequena gosta? Gosta de coisas arregaladas, de desenhos
exagerados e estereotipados, de caretas e luzinhas coloridas piscando por toda
parte, de uma babá electrônica guiando seus passos et voilà, temos o design
industrial contemporâneo. Esse mesmo critério é utilizado nas redes sociais.
Hoje sou visto entre outras coisas como
encrenqueiro, por não aceitar ser infantilizado. As mesmas pessoas que outrora
me admiravam por eu ser ponderado e coerente, hoje reclamam de mim por ter
mantido oque eu demonstrava desde o começo, mas não admitem que elas mesmas
podem ter mudado para pior. O tal “pensamento crítico” não é aplicado ao
próprio escopo, assim não ajuda nem um pouco a pessoa a se melhorar, até porque
a pessoa não quer. Porque isso implicaria em colocar em xeque seus heróis e
suas narrativas, abandonar a conveniência de filosofias rasas e simplistas, admitir que pode estar errado e que o que foi tomado como
inimigo pode não ser tão ruim assim, que todas as ofensas dirigidas a ele podem
não ter base real e outras coisinhas mais, que acarretariam a necessidade de
trocar as fraldas por calças ou saias. Mas é tão confortável se manter
infantilizado, acreditar que existem heróis bonzinhos que pensam por você, te
fazem acreditar que as decisões são suas e te dão um diploma de bem-comportado
com o selo de aprovação do líder, enfim, entregar seu destino a outrem e
brincar de ser adulto livre e independente, repetindo bordões alheios e
aceitando suas conclusões; confortável como a picada do vampiro.
Já faz tempo que deixei de me encantar com
palavras, que passei a estudá-las com ceticismo e frieza, sem me importar mais
com sua forma, justo para não cair nas armadilhas acolchoadas em que outros se
deitam placidamente. Isso explica em parte minha maior dificuldade para
escrever e a aleatoriedade das publicações. Ainda que isso choque alguns de
vocês, é um remédio tão amargo quanto necessário para me manter desperto porque
lamento informar que, antes de melhorar, ainda vai piorar muito.