28/03/2008

"Quem matou o carro elétrico?"


Acreditem, não foi um productor de petróleo temeroso pela falta de demanda. Há mais de uma década a indústria automobilística se tornou mais poderosa do que a de combustíveis, e o petróleo pode ser transformado em muitas cousas. O impacto de todos os carros do mundo passarem a usar baterias aumentaria a demanda por plásticos, pois baterias são pesadas e a redução de massas seria necessária. Teria que ser muito incompetente para quebrar por causa disso.

Tampouco foi a indústria de autopeças. O motor eléctrico quase não pede manutenção, é praticamente instalar e esquecer que ele existe, dispensa transmissão com escalonamentos de marchas na maioria dos carros. Mas suspensão, direção, freios, rodas, equipamentos de segurança e de conforto continuam existindo. Eles pedem manutenção, alinhamento, balanceamento, retífica, reparos, quem sabe um upgrade. Fora que os antigomobilistas jamais abandonariam seus bebedores de combustível, apesar de este se tornar muito caro, no contexto proposto.

Menos ainda uma conspiração internacional para conquistar o mundo, tudo o que um ditador não quer é um povo doente e insatisfeito. Quanto mais puro o ar e silenciosas as cidades, mais calma e saudável é a massa, portanto mais apta ao trabalho. Meio sinistra, esta parte.

"Quem matou o carro elétrico", como escandaliza a frase que infesta a internet, fomos nós. Por que? Porque não o compramos, simples assim. Se compramos, é produzido. Ponto final.

O motor eléctrico é uma maravilha. Silencioso, eficiente, quase indestructível, produz várias vezes mais torque do que o melhor motor a combustão com mesma potência. E ao contrário deste, que precisa girar rápido para gerar força, aquele gera até parado. Por isso muitas vezes dispensa marchas e reduções. Também é muito simples, praticamente é um eixo cheio de bobinas girando dentro de uma carcaça com mais bobinas, fácil de reparar, fácil de envenenar, só consome a potência mínima necessária ao funcionamento na velocidade em que estiver.

Agora, meus amigos e minhas amigas, vocês se perguntam o motivo de termos rejeitado algo tão maravilhoso. Alguma cousa há que eu não expliquei. E há.

As baterias de hoje são, praticamente, os mesmos trambolhos do fim do século XIX. Volumosas, pesadas, caras e armazenam pouca energia. Estão surgindo novas baterias, mas é só agora que elas estão surgindo e ainda são caras demais, mesmo assim ainda não são páreo para um tanque cheio de álcool e um câmbio de cinco marchas. O porém é que raramente andamos mais de oitenta quilômetros por dia, um carro eléctrico consegue facilmente exeder cem quilômetros de autonomia a cem quilômetros por hora ou mais. Devagar, na cidade, uma carga pode durar três dias ou bem mais. E a electricidade é muito barata, se comparada aos combustíveis.

"Então, tio, por que a gente não pegou essa bocada?" é o que me perguntam. Resposta: preconceito. No início do século XX os eléctricos eram grande maioria. Nessa época ainda se girava uma manivela para o carro pegar, o que literalmente quebrava braço de muito marmanjo desatento ao motor. Por isso as mulheres preferiam as baterias a usar gasolina/gás/querosene/et cétera. Também eram (e ainda são) extremamente silenciosos, em uma época em que nível de ruído e poluição não preocupavam senão poucos gatos pingados. Imaginem então, qual motorização uma mulher de posses preferiria. Vejam bem: Mulheres conseguiam dirigir com relativa tranqüilidade. Logo os machões reclamaram e iniciaram a difamação, dizendo que esses carros eram "suaves" demais para um homem de verdade, que macho tinha que fazer força, ouvir barulho e cheirar fumaça. Em um mundo tão conservador e patriarcal, isso caiu como uma bomba. É por isso que muitos idiotas retiram o silencioso do escapamento, para parecerem mais "machos". Só que a inspeção veicular já está começando, terão por força de lei que restaurar os escapamentos, ou seus veículos não sairão do pátio do Detran. Sem a demanda de motores potentes, os investimentos para novos acumuladores minguaram.

Alguém deve estar pensando que isso foi há muito tempo e já não tem valor. Pois se engana. O caso do EV-1, o mais notório de todos, foi quase a repetição. Donos de carros ruidosos e fumacentos usaram a velha mentalidade e espalharam que "carro eléctrico é para mariquinhas". A sociedade retrógrada da maior economia do mundo acatou de imediato. O EV-1 foi vendido na forma de leasing, ao fim do qual deveria ser devolvido à General Motors (isso pegou mal) e, sem a pressão popular em prol daquele carrinho bonito, elegante e arrojado, os "donos" tiveram que devolver. Foram todos destruídos em prensas. Estupidez? E como! Mas estupidez principalmente dos consumidores. Não existe indústria poderosa, organização poderosa, país poderoso, meninas super poderosas. Se nós não compramos deles, eles não têm verba para manter poder algum. Nós (eu, tu, ele, nós, vós, eles) é que damos e tiramos poderes de empresas e governos. Se tivesse havido uma comoção, o EV-1 talvez até tivesse sido descontinuado, mas estariam todos os exemplares ainda rodando, pois ninguém é besta de peitar quem lhes garante os lucros: nós. Ou seja, os electrocidas fomos nós mesmos.

Há, entretanto, uma nova chance aparecendo. Infelizmente ainda são muito caros, mas esportivos eléctricos de alto desempenho e boa autonomia já estão sendo vendidos em algumas partes do mundo desenvolvido. Tendo o triste evento ocorrido há tão pouco tempo, é bem provável que os novos modelos vinguem. Quem sabe a demanda, que é maior do que os fabricantes esperavam, possa baratear e possibilitar um carro familiar.

Mas, ei, há muitos engenheiros mecânicos de talento desempregados! Também há muita gente que não sabe onde gastar seu dinheiro, e que vive reclamando dos ônibus fumacentos e do barulho das metrópoles. Não quero dizer onde cada um deve gastar sua verba, mas se querem melhorar alguma cousa, dêem o exemplo e comecem. Freqüentemente há leilões de carros batidos, pelos quais ninguém dá mais que uma ninharia, mas que um profissional competente consegue facilmente colocar para rodar, em silêncio, sem fumaça e sem marchas. Manhã de inverno em São Joaquim? Blé! Liga a chave e acelera que ele anda, sem essa de aquecer o motor para poder dar partida. Infelizmente o banco já não me dá mais extrato, me dá atestado de pobreza, então não posso ajudar senão com alertas e idéias. Aquela caminhonete só roda na cidade, fazendo entregas? O motor está fazendo dez quilômetros por litro de lubrificante, após a sexta retífica? Tem algum para investir? Acopla um trifásico de vinte cavalos na transmissão, põe um sub-chassi com umas dez baterias e manda ver. O resultado vai surpreender, pois já há gente fazendo isso pelo mundo inteiro, inclusive no brasil.

Talvez eu esteja sendo um pouco subversivo, mas às vezes é necessário uma chacoalhada para as pessoas acordarem. Às vezes precisamos sentir falta de ar puro e silêncio, o que não falta geralmente não tem o valor reconhecido.

O que digo aqui vale não só para o tema do texto, mas para qualquer assunto. Se tu não compras, ninguém fabrica, ninguém se esforça em aperfeiçoar; seja carro, electrodoméstico, brinquedo, programa de televisão, o escambáu. Aliás, sugiro que evitem programas de tevê apelativos, que não acrescentem bulhufas. Eles alienam, gente alienada não reclama e compra o que lhes é empurrado. A retomada das pesquisas não se deu de boa vontade, a legislação contra emissões pesou na balança, agora as montadoras estão em uma corrida pela bateria eficiente, inclusive a General Motors. Alguém pressionou, e pressionou feio.
No fim das contas, ninguém perde com uma evolução. E geralmente são os ranhetas, antes contrários, os que mais gostam quando ela dá os devidos frutos.

09/03/2008

Onirautas V: As cores ocultas.


Muito tempo depois, retomo as postagens e a Onirisséia.

Há um ditado que diz "Até um macaco aprende a desenhar, a composição de uma obra de arte precisa mais que aprendizado". É o que diferencia o artista do mero ilustrador. O ilustrador copia e adapta imagens que já conhece, o artista as concebe. O ilustrador simplesmente entrega o que foi encomendado, o artista lega um tesouro à posteridade. Não vou desmerecer o trabalho árduo dos ilustradores meramente técnicos, sem eles as obras-primas ficariam confinadas aos museus e acervos de milionários, eles fazem cópias praticamente perfeitas e permitem que qualquer pessoa possa ter um Bosch na sala de estar ou no quarto.

O artista, porém, concebe a obra porque já a conhece previamente. Ele já "sonhou" com ela. Muitas vezes o que vai para a tela, ou para a pedra, está imerso na correnteza de desejos e frustrações do artista, não sendo assim o fiel do que ele queria materializar. Por isso alguns artistas de verdade têm chiliques de vez em quando, porque o mundo material jamais consegue prover os recursos necessários para a perfeita execução do trabalho. Não se enganem com aquele amarelo maravilhoso e aquele azul de tirar o fôlego. Nem chegam perto do original.

Dizem os espíritas que, além dos sete matizes que o olho orgânico consegue enxergar, existem mais vinte e cinco. Podem imaginar o que seria enxergar mais vinte e cinco matizes? É como se um cego, de uma hora para a outra, passasse a enxergar aquilo que só conhecia pelos relatos alheios.

Aqui temos, mais uma vez, a importância de se dar valor aos sonhos. Quem o faz recebe idéias muito menos comuns (posto que nada há de original sob o sol) do que os demais. Um sonho, principalmente consciente, nos revela todo o potencial que vai desde nossos instintos mais baixos, até a mais elevada de nossas virtudes. É assim que a aparentes bagunças de Picasso e Miró conseguem encantar, causar espanto, e até arrancar lágrimas dos observadores. São obras que vão muito além do que as palavras (ainda ineficientes, basta ver as guerras) não conseguem, a objectividade mecanicista ignora completamente e conseguem tocar as pessoas lá no âmago, dentro do mais profundo rincão do espírito. Esses dois foram artistas de verdade.

Quem vê as obras de Dali, pode pensar que ele só trabalhava sob efeito de alucinógenos. Não é de todo mentira, a pintura era o seu ópio e Gala, sua alucinação mais cara. Não vou entrar nos méritos de seus métodos, isso é para a imprensa ou a polícia, não me importa agora. Importa ver o que aquele homem era capaz de fazer quando sonhava acordado. Era simplesmente a imagem mais próxima possível de sua psiquê, como também a da maioria das pessoas do mundo. Ele deixava o sonho correr solto. Ilustrava, quando precisava de dinheiro, mas sua fama e fiabilidade artísticas eram firmadas pelos sonhos que ele eternizou na tela. Em vários quadros explicitava seu medo de ser vazio, o medo de perder a esposa, bem como sua religiosidade muito particular. Ele conseguiria isso se fosse meramente acadêmico, passasse horas e horas em um auditório refrigerado, discutindo as mazelas do mundo e a péssima idéia de o homem ter sido criado? Acredito que não. Guernica de Picasso mostrou isso tudo de uma só vez, sem longos e enfadonhos discursos de caráter meramente retórico.

Beleza! Então é só eu tomar um sonífero na veia que fico rico, tio Nanael? Alto lá, eu não disse isso. Há características inatas a serem levadas em conta. Essas pessoas tinham abertura para artes plásticas, não simplesmente uma portinha entreaberta, mas um terreno completamente sem muros, nos quais sonhos e emoções andavam livremente.É aí que entra a figura do ilustrador, que um bom pintor precisa ser. Ele sabe organizar ainda que sob aspecto caótico, todas as nuances que se apresentam durante o sonho e a inspiração em vigília. É o que diz aquela propaganda de pneu, potência sem controle, não é nada. Mas também não adianta ter uma banda de rodagem de fibra de carbono com silicone e usar um motorzinho de enceradeira! Controle sem potência não serve de nada. É aí que o ilustrador precisa deixar eclodir a porção, por pequena que seja, do artista que todos têm. Não que vá chegar a um George Petty, mas a qualidade dos trabalhos crescerá bastante.

Uma característica do verdadeiro artista, é dar graça e encanto aos factos cotidianos, como a obra de William Bouguereau que ilustra este texto. Notem que ele deu vida ao quadro, colocando elementos sutís que uma visão meramente mecânica deixaria passar. A criança fecha os olhos para a visão não ofuscar os outros sentidos, a moça tem um sorriso sereno e terno. Não é algo que um computador conseguiria produzir, só reproduzir. Computadores não sonham.

Quem se habitua a se deixar sonhar, consegue expressar muito melhor e com mais clareza o que sente. Algo muito importante para pessoas com travas de infância, como eu. Se essas pessoas não tivessem essa abertura, teriam perecido muito cedo, pois a força criativa acabaria por sufocá-las, em vez de sustentá-las. É como um medicamento, uma ministração equivocada pode matar em vez de curar. Sonhar não é supérfulo, ainda que em vigília. Há quem confunda sonho com ilusão, geralmente fazendo o mesmo com a fé. Falta-lhes estudar a fundo o que estão dizendo. Ilusão é a impressão de haver algo que não existe de verdade. O que faz um sonho é mostrar do modo mais acessível possível, aquilo que a pessoa não consegue ver conscientemente. Já a fé, ao contrário da contemplação passiva que muitos pensam que ela é, se trata da confiança de atingir o almejado. Até o mais egoísta e arrogante executivo tem fé no que faz, ou não vislumbraria resultados que justificassem seu trabalho.

Aqui vale novamente lembrar que procurem questionar os eventos, quando estiverem sonhando. É a diferença de sonho (ou fé) cego e sonho consciente. O cego tateia e não faz a mínima idéia do que existe ao seu redor, o consciente usa todos os sentidos para explorar o ambiente onírico, com isso sabe o que sonhou e porque sonhou. Resultando em uma obra mais elaborada, quase sempre contando com elementos simbólicos que intrigam quem vê e enriquecem o trabalho. Basta ver a Monalisa, que até hoje gera polêmina, e todos os dias aparece alguém dizendo que decifrou seu segredo definitivamente. Sim, Da Vinci dormia pouco e salpicadamente, mas ele delirava legal, bicho! Meu, o cara sacou o helicópdero, mó viagem! Gênios não precisam dormir para sonhar.

Um pequeno adendo. Fico a imaginar se Audrey Beathan, a famosa Mica Mancada, não se permitisse ter suas onirisséias. Sempre insisto para que ela escreva uma auto biographia, é certeza de que seria topo de vendas por muito tempo. O que ela pinta? Pinta o sete e borda o oito. É uma pessoa que não pode ser deste mundo, ela não foi parida, a mãe sonhou com ela e a materializou.

Muitos artistas de grande talento são sinestetas. Eu não acredito quando dizem que se trata de um fenômeno meramente neurológico, pois ver losangos de seda vermelha enquanto se está ao volante causaria muitos acidentes, se os olhos e o tato fossem os mesmos usados para eventos reais, e o cérebro é muito facilmente enganado por ilusões. Na sinestesia não há ilusões, as sensações existem mesmo. Há mais cousas nesse baú do que o manto colorido que o cobre. Acredito que só nos sonhos os sinestetas conseguem usufruir de todo o potencial de adição de sentidos de que dispõe. A visão que citei não substitui o que os olhos enxergam, é uma visão à parte, como que um terceiro olho aberto, uma segunda pele tateando, uma terceira narina independente, et cétera. Aliás, se algum sinesteta estiver lendo isto, favor comentar e dizer o que lhe parece. A vida deles, apesar de dificultada pelo excesso de informações, é bem mais rica. Não há quadro nem tinta que consiga reproduzir o que eles percebem, mais ou menos como acontece no quadro "Campo de Girassóis" de Van Gogh. Encontraram milhares de tons de amarelo naquelas flores pintadas, tudo tão bem distribuído e organizado, que não pode ter sido acidental. Van Gogh tentou a todo custo reproduzir os matizes que viu quando seu corpo dormia, obviamente em vão. Se ele era sinesteta, não se pode ter certeza, o termo é muito recente e os estudos (que não tentam "curar" a sinestesia com drogas) mais ainda.
Sonho, acompanhado da ação, não é bobagem. Não deixem substituir os teus por drogas ilegais ou de laboratórios famosos. O preço que a vida vai cobrar depois é muito mais alto do que imaginas. Agora sugiro que dê uma busca pela rede, que procure os Norman Rockwell da vida e aprecie com calma as obras, vale à pena. Depois os sonhos saberão recompensar.