Acreditem, não foi um productor de petróleo temeroso pela falta de demanda. Há mais de uma década a indústria automobilística se tornou mais poderosa do que a de combustíveis, e o petróleo pode ser transformado em muitas cousas. O impacto de todos os carros do mundo passarem a usar baterias aumentaria a demanda por plásticos, pois baterias são pesadas e a redução de massas seria necessária. Teria que ser muito incompetente para quebrar por causa disso.
Tampouco foi a indústria de autopeças. O motor eléctrico quase não pede manutenção, é praticamente instalar e esquecer que ele existe, dispensa transmissão com escalonamentos de marchas na maioria dos carros. Mas suspensão, direção, freios, rodas, equipamentos de segurança e de conforto continuam existindo. Eles pedem manutenção, alinhamento, balanceamento, retífica, reparos, quem sabe um upgrade. Fora que os antigomobilistas jamais abandonariam seus bebedores de combustível, apesar de este se tornar muito caro, no contexto proposto.
Menos ainda uma conspiração internacional para conquistar o mundo, tudo o que um ditador não quer é um povo doente e insatisfeito. Quanto mais puro o ar e silenciosas as cidades, mais calma e saudável é a massa, portanto mais apta ao trabalho. Meio sinistra, esta parte.
"Quem matou o carro elétrico", como escandaliza a frase que infesta a internet, fomos nós. Por que? Porque não o compramos, simples assim. Se compramos, é produzido. Ponto final.
O motor eléctrico é uma maravilha. Silencioso, eficiente, quase indestructível, produz várias vezes mais torque do que o melhor motor a combustão com mesma potência. E ao contrário deste, que precisa girar rápido para gerar força, aquele gera até parado. Por isso muitas vezes dispensa marchas e reduções. Também é muito simples, praticamente é um eixo cheio de bobinas girando dentro de uma carcaça com mais bobinas, fácil de reparar, fácil de envenenar, só consome a potência mínima necessária ao funcionamento na velocidade em que estiver.
Agora, meus amigos e minhas amigas, vocês se perguntam o motivo de termos rejeitado algo tão maravilhoso. Alguma cousa há que eu não expliquei. E há.
As baterias de hoje são, praticamente, os mesmos trambolhos do fim do século XIX. Volumosas, pesadas, caras e armazenam pouca energia. Estão surgindo novas baterias, mas é só agora que elas estão surgindo e ainda são caras demais, mesmo assim ainda não são páreo para um tanque cheio de álcool e um câmbio de cinco marchas. O porém é que raramente andamos mais de oitenta quilômetros por dia, um carro eléctrico consegue facilmente exeder cem quilômetros de autonomia a cem quilômetros por hora ou mais. Devagar, na cidade, uma carga pode durar três dias ou bem mais. E a electricidade é muito barata, se comparada aos combustíveis.
"Então, tio, por que a gente não pegou essa bocada?" é o que me perguntam. Resposta: preconceito. No início do século XX os eléctricos eram grande maioria. Nessa época ainda se girava uma manivela para o carro pegar, o que literalmente quebrava braço de muito marmanjo desatento ao motor. Por isso as mulheres preferiam as baterias a usar gasolina/gás/querosene/et cétera. Também eram (e ainda são) extremamente silenciosos, em uma época em que nível de ruído e poluição não preocupavam senão poucos gatos pingados. Imaginem então, qual motorização uma mulher de posses preferiria. Vejam bem: Mulheres conseguiam dirigir com relativa tranqüilidade. Logo os machões reclamaram e iniciaram a difamação, dizendo que esses carros eram "suaves" demais para um homem de verdade, que macho tinha que fazer força, ouvir barulho e cheirar fumaça. Em um mundo tão conservador e patriarcal, isso caiu como uma bomba. É por isso que muitos idiotas retiram o silencioso do escapamento, para parecerem mais "machos". Só que a inspeção veicular já está começando, terão por força de lei que restaurar os escapamentos, ou seus veículos não sairão do pátio do Detran. Sem a demanda de motores potentes, os investimentos para novos acumuladores minguaram.
Alguém deve estar pensando que isso foi há muito tempo e já não tem valor. Pois se engana. O caso do EV-1, o mais notório de todos, foi quase a repetição. Donos de carros ruidosos e fumacentos usaram a velha mentalidade e espalharam que "carro eléctrico é para mariquinhas". A sociedade retrógrada da maior economia do mundo acatou de imediato. O EV-1 foi vendido na forma de leasing, ao fim do qual deveria ser devolvido à General Motors (isso pegou mal) e, sem a pressão popular em prol daquele carrinho bonito, elegante e arrojado, os "donos" tiveram que devolver. Foram todos destruídos em prensas. Estupidez? E como! Mas estupidez principalmente dos consumidores. Não existe indústria poderosa, organização poderosa, país poderoso, meninas super poderosas. Se nós não compramos deles, eles não têm verba para manter poder algum. Nós (eu, tu, ele, nós, vós, eles) é que damos e tiramos poderes de empresas e governos. Se tivesse havido uma comoção, o EV-1 talvez até tivesse sido descontinuado, mas estariam todos os exemplares ainda rodando, pois ninguém é besta de peitar quem lhes garante os lucros: nós. Ou seja, os electrocidas fomos nós mesmos.
Há, entretanto, uma nova chance aparecendo. Infelizmente ainda são muito caros, mas esportivos eléctricos de alto desempenho e boa autonomia já estão sendo vendidos em algumas partes do mundo desenvolvido. Tendo o triste evento ocorrido há tão pouco tempo, é bem provável que os novos modelos vinguem. Quem sabe a demanda, que é maior do que os fabricantes esperavam, possa baratear e possibilitar um carro familiar.
Mas, ei, há muitos engenheiros mecânicos de talento desempregados! Também há muita gente que não sabe onde gastar seu dinheiro, e que vive reclamando dos ônibus fumacentos e do barulho das metrópoles. Não quero dizer onde cada um deve gastar sua verba, mas se querem melhorar alguma cousa, dêem o exemplo e comecem. Freqüentemente há leilões de carros batidos, pelos quais ninguém dá mais que uma ninharia, mas que um profissional competente consegue facilmente colocar para rodar, em silêncio, sem fumaça e sem marchas. Manhã de inverno em São Joaquim? Blé! Liga a chave e acelera que ele anda, sem essa de aquecer o motor para poder dar partida. Infelizmente o banco já não me dá mais extrato, me dá atestado de pobreza, então não posso ajudar senão com alertas e idéias. Aquela caminhonete só roda na cidade, fazendo entregas? O motor está fazendo dez quilômetros por litro de lubrificante, após a sexta retífica? Tem algum para investir? Acopla um trifásico de vinte cavalos na transmissão, põe um sub-chassi com umas dez baterias e manda ver. O resultado vai surpreender, pois já há gente fazendo isso pelo mundo inteiro, inclusive no brasil.
Talvez eu esteja sendo um pouco subversivo, mas às vezes é necessário uma chacoalhada para as pessoas acordarem. Às vezes precisamos sentir falta de ar puro e silêncio, o que não falta geralmente não tem o valor reconhecido.
O que digo aqui vale não só para o tema do texto, mas para qualquer assunto. Se tu não compras, ninguém fabrica, ninguém se esforça em aperfeiçoar; seja carro, electrodoméstico, brinquedo, programa de televisão, o escambáu. Aliás, sugiro que evitem programas de tevê apelativos, que não acrescentem bulhufas. Eles alienam, gente alienada não reclama e compra o que lhes é empurrado. A retomada das pesquisas não se deu de boa vontade, a legislação contra emissões pesou na balança, agora as montadoras estão em uma corrida pela bateria eficiente, inclusive a General Motors. Alguém pressionou, e pressionou feio.
No fim das contas, ninguém perde com uma evolução. E geralmente são os ranhetas, antes contrários, os que mais gostam quando ela dá os devidos frutos.