15/01/2011

RIP Cultura

Quem conheceu a TV Cultura nos anos 1990 sabe da pérola que era. Infelizmente seu sinal só estacionou em Goiânia tardiamente, mas com muitas reprises do programa Rá-Tim-Bum e jóias dos anos 1980 ainda serviam bem e eram apresentadas.
A agilidade de uma grade que não subestimava a inteligência do telespectador com excesso de explicações, era uma das tônicas, ao contrário do que as redes privadas já faziam, deturpando a idéia original do politicamente correcto, tornando-o uma censura branca. Afinal, quem não sabe o mínimo não entenderá explicações do médio.
Foi uma época rica em bons documentários, apresentadores compromissados com o público da emissora e não com os níveis de audiência, programas estrangeiros que jamais passariam na Globo ou SBT.
Até mesmo o Repórter Eco, que trata de um tema quase sempre tocado com extremismo, dosava a linguagem e transbordava as informações relevantes, sem querer exterminar a espécie humana nem transformar os entrevistados em estrelas.
A Cultura era uma rede pública de rádio e televisão. Valia à pena relevar o sinal mais fraco e vulnerável para ter alguns instantes da sensação do que seria viver no primeiro mundo.
Embora fraca em recursos financeiros, era uma ilha de qualidade e respeito ao espectador. Há muitos vídeos daquela época (aqui) na rede. Falava-se a verdade, pois o patrocínio não tinha peso para calar o jornalista, muito menos a vaidade política. Como acabei de dizer, não tinha.
O primeiro escabro foi um famoso esquerdista assumir a presidência da Fundação Padre Anchieta, que mantém a TV Cultura. Esperava-se que alguém perseguido e censurado pela ditadura desse o bom exemplo. Não deu. Soninha Francine, apresentadora do programa RG (um episódio) foi demitida após dizer que já fumou maconha, em uma entrevista à Veja. Ela disse claramente que aquilo destrói a vida de uma pessoa. Não foi convidada a se explicar, se desculpar ou mesmo dizer em seu programa porque as drogas são tão perniciosas, o que teria sido uma grande contribuição ao público (majoritariamente jovem) do programa. Ela foi demitida. Sumariamente, sem direito a choro nem vela.
De então em diante a situação da emissora se deteriorou. Os dirigentes seguintes agravaram em vez de consertar as besteiras de seus antecessores, funcionários foram demitidos a pretexto de enxugar a empresa. A última pendenga tem como pivô um lavajado que há nas instalações da emissora, que serve aos funcionários. O presidente actual João Sayad alega que nem a Globo tem um lavajato dedicado... Imagino o impacto que dois peões têm nas contas de uma emissora, que por  menor que seja faz circular muito dinheiro. Não, não estou defendendo que todo mundo tenha lajavato e lanchonete grátis para seus funcionários, é apenas um exemplo da avareza que tomou conta de uma emissora que deixou de ser pública para ser estatal.
Uma das maiores perdas foi com a demissão da jornalista Salete Lemos, por ter escancarado a farra e os abusos dos bancos no Brasil, de forma que todo e qualquer espectador pudesse compreender, sem economês e sem verborragias supérfulas. O patrocínio passou a ter mais peso do que nas emissoras comerciais. Bem mais, porque para um patrocinador conseguir demitir um jornalista de renome e prestígio público, precisa este ter dito algo de muito grave, ofendido pessoalmente a empresa e não ter aceito réplica ou retratação.

O golpe de misericórdia virá agora, a emissora terceirizará (aqui) parte da programação. Por causa das dívidas trabalhistas (cerca de R$ 160.000.000,00) causadas pela má gestão dos antecessores, menos de um terço da programação deverá ficar à cargo da Cultura. Menos de um terço. Isto inclui o fim do contracto com TV Justilça e TV Assembléia, esta, para quem não sabe, permite ver direitinho o que os parlamentares estão fazendo, por mais que eles disfarcem. A outra é um verdadeiro mapa para quem precisa recorrer, ou quer evitar ter de recorrer, ao judiciário. São programas de grande utilidade para o público que a TV Cultura amealhou nestas quatro décadas. O presidente da entidade diz que é justo o contrário, para concentrar o "reduzido talento administrativo na telinha e no rádio". Reduzido por causa dos erros crassos e da intervenção política na emissora. É fácil prever que uma enxurrada de igrejas caça-níqueis fará a festa, além dos polyshops da vida.


É triste o terceiro artigo da nova fase do Talicoisa (aqui) dar uma notícia dessas, mas é nosso dever informar não só o caminho das flores, mas também alertar para os escorpiões que se escondem entre as floreiras. A emissora está na iminência de perder, em ações judiciais, quase o dobro dos R$ 84.000.000,00 que o Estado repassa como orçamento.
Se antes a despreocupação com índices de audiência garantia a adesão do público cativo, hoje o afastamente do mesmo é desculpa para passarem a usar a relação custoXaudiência como baliza. Decerto que a qualidade da audiência caiu, ou programas imbecilizantes chamados de shows de ralidade não teriam um terço do público que têm. As pessoas estão com preguiça de raciocinar sobre o que estão vendo. Por isto mesmo a boa e velha Cultura se faz ainda mais necessária. Depois da internet, o público percebeu que não precisa se prender às porcarias da televisão privada para ter entretenimento; depois dos desmandos ele percebeu que também não pode mais contar com a rede pública para isto. Eu mesmo não agüento ficar mais do que cinco minutos diante de uma televisão ligada. Via de regra, nem dois minutos. A vontade de ir ao banheiro e descarregar o barroso impera, ou mesmo a necessidade de respirar ar fresco e oxigenar minhas sinapses. Fiquei sem televisão, de novo. Doarei minha tevezinha P&B de cinco polegadas, ela durará algum tempo até os sinais analógicos serem extintos, mas para mim se tornou inútil.

Espero francamente que o elenco remanescente consiga, ao fim das ditaduras de esquerda e direita que enfrentou, retomar o caminho que garantia à emissora a pouca e fiél audiência que tinha, sem as imensas dívidas trabalhistas que a estupidez das administrações posteriores renderam. Porque seria triste, uma perda lamentável ver a TV Cultura ter o mesmo fim da Manchete (aqui e aqui).

Ainda bem que temos os Youtubes da vida, ou programas como Bambalalão e espaciais como os do Palavra cantada (como aqui) ficariam inacessíveis ao público infantil de hoje, que precisa do respeito que estes programas tiveram com nossas gerações.

8 comentários:

Newdelia disse...

só posso dizer que é lamentável. Meu filho foi criado e alfabetizado (sozinho) assistindo ao Bambalalão.
Beijos

Nanael Soubaim disse...

Uma amostra do que a televisão bem direcionada é capaz.

Lilly Rose disse...

Bom dia Querido Nanael !!

Não há como não enxergar a decadência da TV Brasileira, nos últimos anos.

A TV Cultura de hoje é uma triste constatação do que as mídias corporativas são capazes de fazer.

Eu também pouco vejo TV actualmente, domingo então, por Deus !!! É o ápice da "cultura" inócua.

Parece que estamos a voltar à época dos Romanos, "pão e circo para o povo..."

Mas o Brasileiro não é um povo tolo, em breve há de desepertar desta letargia, e exigirá qualidade de uma mídia muito útil e importante como a TV.

Beijos Amigo Querido,

Abençoada Semana !!

Aromas de Rosas...

Lilly Rose

Nanael Soubaim disse...

O Criador te ouça e encarregue Hermes da missão.

Vy disse...

Oi meu querido! Olha, minhas meninas (moças) tanto sentem falta da programação que procuram caçar vídeos e baixar torrents do "Coelho Peter Rabbitt e amigos", desenho puro, lindo, de Beatrix Potter, e alguém deve se lembrar do "Parque da Corsa Branca" e "A rua dos Pombos"? Outros desenhos que infelizmente não lembramos os nomes e assim dificulta o trabalho da busca. Mas eram coisinhas do tipo apenas narrado por uma voz masculina aveludada e que fazia a gente parar pra ouvir ele dizer: "Sossega e silêncio" (duas abelhinhas); "coma as verduras" (aparecia uma alface com pernas); "brinque lá fora", e asim por diante. Eram objetos, bichinhos, frutas e legumes, que de uma forma sensacional faziam nossos pimpolhos comerem tudo que tinha no prato! Hoje, infelizmente, "e digo isso com dor no coração", o incentivo a mediocridade tomou conta da tv com episódios diários, ao vivo, da vulgaridade humana. Isso porque se dá o singelo nome de "Grande Irmão". Que pena...

Nanael Soubaim disse...

No que depender petralhas e pesdebalhas, que pena MESMO!

cleciopegasus disse...

Tomara que a situação da TV Cultura melhore. No Recife, algo semelhante ocorreu com a TV Universitária. A TV teve boa parte da programação terceirizada. A situação chegou a ser tão grave que ótimos programas da TV Cultura, retransmitidos pela TV Universitária, eram interrompidos no meio para os programas terceirizados, especializados em divulgar o cenário brega recifense. Eram poucas as exceções, a exemplo do programa Som da Sopa, que não é mais transmitido.

Mudei de cidade e fiquei alguns anos sem ver o prédio da TV Universitária. Este ano, ao revê-lo, tomei um grande susto. O prédio estava tão deteriorado que perguntei a minha irmã se a TV não tinha mudado de lugar. O prédio parecia um lugar abandonado, uma cidade-fantasma!

Parabéns pelo blog e pela profundidade no tratamento dos temas. Grande abraço !

Nanael Soubaim disse...

Agradeço pelo testemunho, ele será muito útil. Bem-vindo ao barco.