14/06/2012

Lingerie bege


Indiferente ao burburinho das colegas, ela entra em um dos sanitários e fecha a porta. Elas não deixam isso passar-lhes despercebido, estão acostumadas a tagarelar mesmo mandando o barroso para fora, com a porta aberta. A conversa alta e estridente passa a se dar aos cochichos e gestos, para que ela não perceba que falam de si.

Calam-se por um instante, para tentar ouvir o choro baixinho de quem não quer ser ouvida em sua intimidade. Nada. Nem choro, nem soluços, nem mesmo um gemido. Especulam que acontecimento terrível teria feito a moça se trancar em silêncio, na baia do sanitário. Logo alguém cogita ter sido por causa de homem. Ah, mas é claro, só pode ser. Começam a discutir a respeito sem citar nomes e sem dar pistas de quem é a coitada, a traída, a infeliz vítima de um cafajeste.

Toda a discrição cabe perfeitamente na hipótese de drama passional. Se estivesse feliz, estaria espalhando para todo mundo, para causar inveja, contar vantagem, essas cousas de gente moderna e antenada com as baladas. Mas deixem que hoje mesmo, após o expediente, a arrastam para uma boate e a enchem de garotões gostosos, tarados e avessos a compromissos. Ela vai dar até arder e amanhã estará feliz da vida.

Uma delas tem a curiosidade de olhar, com todo o cuidado e silêncio possíveis, pelo vão inferior da porta. Fica trêmula, estática, pasma e abismada. Pisca e se belisca para ter certeza do que está vendo. É enorme! Não imagina por que uma mulher usaria aquilo de livre espontânea vontade. Vai imediatamente contar para as outras, a descrever com riqueza de detalhes aquela coisa sem detalhe algum, que explica o motivo de ela usar cós alto até a cintura. Aliás, para elas é a coisa mais senil que uma mulher pode usar.

Voltam a cochichar especulações sobre aquela calcinha bege, que pelo tamanho cobre totalmente os quadris, talvez sendo tão alta quanto as calças. Levantam saias e baixam os cós de suas calças para mostrar lingeries de mulheres saudáveis, modernas, com vida sexual activa e bem resolvida. Algumas são meros fios com uma telinha na frente, embora várias sejam consideradas grandes, cobrindo o derriére quase totalmente. Mas nenhuma é grande como aquela calçola de vovó.

Calam-se quando ouvem a descarga. Ela abre e é alvejada por olhares disfarçados. Lava bem as mãos, cumprimenta-as e sai em passos delicados para seu posto de trabalho. Pernas juntinhas e andar firme. Assim que sai, elas voltam a falar com vontade. Nunca tinham notado tanto aquele cós alto. Não o cós baixo com um remendo em cima, para parecer alto, mas alto até a cintura, como nos anos oitenta. Olham para o relógio de parede e decidem ir também, mas de butuca ligada nela.

Se revesam em idas que seriam desnecessárias no cotidiano comum, para verem se descobrem algo mais. A cada uma que volta, enquanto cumprem com os prazos, discutem veladamente as conclusões a que cada espiã de toilete chegou. Desde o tablete de chocolate até a ordem matemática da mesa, tudo serve de combustível. Até a chave do carro, presa a um chaveiro em forma de casa, é discutido entre gestos e abreviaturas verbais. Uma colega de fora da roda a aborda, tratando-a com carinho. Pronto! Agora descobriram seu segredo! É lésbica! Talbez bissexual, mas ela gosta de mulher. É por isso que não quer chamar atenção dos homens, que não quer ser sexy para eles e nunca ouviram falar de casos seus com colegas. Deve ser comprometida.
A hipótese é levada em consideração, mas elas conhecem outras lésbicas e elas não usam calçolas beges. Aproveitam que ela sai para a sala do chefe e aumentam o volume da conversa. O estagiário ouve e mete o bedelho, diz que a ouviu falando "Sou de virgem" ao celular. Elas se olham, arregalam os olhos, abrem as bocas de espanto e em poucos segundos o escritório descobre que tem uma funcionária virgem. Todos se calam quando ela volta. As conversas tornam  ser em gestos e meias-palavras. Os homens passam a fantasiar com quem e como seria o desvirginamento daquela mulher, comentam que o episódio deveria ser filmado para servir de prova. Vão um a um ao sanitário, dar vazão à fantasia.

Ela atende ao celular, falando em tom moderado, voz calma e risos discretos. Diz que busca as três e que há dois quartos esperando por elas. A palavra "irmãs" tem muitos significados, mas os outros só imaginam a acepção religiosa. Pensam que ela faz parte de uma seita que tolera o homossexualismo. O facto de elas sonharem com Brad Pitt, não significa que sejam suas amantes, então imaginam que tenha feito também voto de castidade. Ah, agora quela calçola faz todo sentido, é uma espécie de freira de uma religião qualquer. Como deve ser infeliz a vida sem sexo! Começam a ter pena dela. Não imaginam um motivo são para alguém tornar-se celibatária, ainda mais sendo bonita e ainda jovem.

A hora do almoço também serve para espionagem. O restaurante fica inexplicavelmente cheio naquele início de tade. Não que garçons e gerente reclamem. Ela faz um gesto é atendida por uma garçonete, com a qual demonstra certa intimidade. Será? Chega o prato, ela faz uma pausa e começa a comer. Os curiosos comem quase sem ver o quê, acabando por comer mais do que o normal. Notam seu recato, sua moderação, sua classe, sua boquinha vermelho-cereja provocando reações íntimas. Prestam atenção de modo que seriam capazes de desenhá-la a mão livre, se soubessem desenhar. Nisso acaba despertando sentimentos mais afetuosos em alguns colegas. Eles passam a imaginá-la em seu quarto, imaginando como será seu quarto, usando só aquela lingerie bege.
Uma das vigilantes usa o tablet para falar na rede social, combinando com uma conhecida e depois com o chefe, que adora a idéia.

Como tudo está dentro do prazo, a chefia avisa que um proctologista e uma ginecologista estão na empresa para exames surpresa. Um gay gaiato fica indeciso e pergunta qual o critério para definir o gênero, o proctologista diz que é pelos cromossomos e ele entra na fila dos homens. As causadoras da polêmica aguardam pelos relatos da amiga de uma delas. O relato surpreende, a moça não é virgem, mas também não é chuchu na serra. Afirma que as duas peças da lingerie combinam. Passam a cogitar um trauma sexual. Até o fim do dia alguém conclui e espalha que ela foi violentada na adolescência, embora a médica não tenha encontrado qualquer sinal de violência, mesmo remota.

Na manhã seguinte há alguém designada para espionar sua chegada. Ela chega em um Maverick preto, cheio de adereços e rodas esportivas. O ronco até assusta. Ela sai em uma sai preta plissada longa, e uma camisete xadrez marfim e chumbo. O grupo recebe a notícia  especula sua orientação política, passando a considerá-la uma "reacionária moderada". No toilete, novamente uma calçola bege sem enfeite nenhum. Deve ter ficado frígida depois de adulta e se convertido à ordem das Abstinentes de Jesus. Elas nunca estiveram tão alegres e motivadas, até a productividade no trabalho cresceu, como se seus problemas pessoais não tivessem mais importância. Elas não se dão conta, mas seus dramas e frustrações passam a ficar pequenos diante daquela colega misteriosa. E ela é tão bonita, tão educada, tão prestativa, tão dedicada ao trabalho! Espalham suas boas virtudes pela empresa e cada um que ouve acrescenta mais uma.

Todos ficam felizes em ter uma pessoas tão amável e honesta como colega. O clima no seio da equipe fica mais leve, o bom humor aflora, o ar condicionado é trocado por janelas abertas e tudo fica mais bonito. Imaginem só, dar tanta importância a problemas cotidianos! Problemas são parte inegociável da vida! Eles chegam e vão embora, passam, acabam assim que são resolvidos. Tudo graças àquela colega tão bonita e recatada! Que reacionária que nada! É uma boa samaritana, isso sim! Deve abrir mão de alguns prazeres pessoais em prol de quem precisa. De perigo iminente a musa do escritório, ela passa em um segundo, e todo mundo vasculha a internet para saber mais sobre o Maverick.

Em um mês, um dos colegas toma coragem para falar com ela, com tato. Seis meses depois estão se casando, sem que assuntos pessoais tenham sido ventilados por sua conta. Já pela conta alheia...

Um comentário:

Tenham respeito e boa educação, que todos nos entenderemos.