15/07/2019

Ao abismo






            Vejo à frente o abismo, mudo e retumbante em sua luz negra, que preenche todo o vácuo turbulento que me rodeia. Ainda que recuasse eu avançaria, porque recuar é dizer “não” e o abismo desconhece negativas. Só conhece “fazer” e “cessar”. Cessar seria permanecer na supermorte em que se tornou a existência mórbida de sorrisos tênues, fatigantes e dolorosos.


            Não existe escolha senão avançar. Parar é abdicar de escolher e tornar-me alvo passivo das edges incessantes. Avançando escolho os motivos pelos quais devo sofrer, em vez de sofrer por motivações terceiras. Não se controla e não se pode defender-se das dores alheias.


            A vida é triste? Cruel? Vale a pena? Abdique desse drama supérfluo. Questionar a validade é renunciar automaticamente àquilo que se questiona. A vida já estava aqui quando chegaste e aqui estará muito depois de tua partida. Não é ela que deve ou não valer a pena, és tu.


            Ainda caminho para o abismo, às vezes consciente, às vezes de modo meramente automático; aqui quando as forças e os motivos se mostram pequenos demais para alimentar a ação. Às vezes me esquecendo de que já caí de outros abismos, cada vez mais profundos em sua sucessão. Às vezes pareciam não ter fim, mas eu sempre cheguei ao piso rochoso da fossa após quedas cada vez mais prolongadas.


            Quanto mais me aproximo de sua bocarra escancarada e faminta, mais o vácuo frio e turbulento me queima por dentro, mas também mais me faz perceber o quanto a bonança do ponto de queda era tão mais triste e dolorosa, que faz então o óbito incessante parecer vida plena. Era só um analgésico que não curava realmente a enfermidade, e para o qual eu já estava insensível.


            Não, eu não direi que todas as pessoas são infelizes e não o sabem, não estou em suas mentes para saber o que realmente sentem e, ainda que lá estivesse, certamente não saberia traduzir os dialetos que somente a cada um cabe compreender; decerto que nem mesmo cada um tem ciência plena daquilo que lhe povoa cada pensamento, que dirá um observador? Afirmar aquilo seria pedância de um paciente que se nega ao tratamento psicanalítico.


            Enfim, nem as pessoas se conhecem realmente e não serei mais um a pleitear um busto por fazê-las duvidar de seus próprios motores de vida. Minhas dores são mais do que suficientes e só se aplicam a mim, não quero disseminá-las. Fazendo isso, eu seria tão pior do que os agentes agressores, que parar doeria menos do que o remorso.


            Ao abismo. Vejo tanto nada que tudo o que existe caberia ali com sobra de espaço, e realmente tudo se apresenta em uma fração de tempo que não posso medir. Ainda que pudesse, por que o faria? Estaria atrasado? Para quê? Tampouco tenho pressa de que se dê o desfecho. Urgência talvez, mas não pressa. Gostaria que tudo acabasse de uma vez por todas, mas quem me garante que realmente se acaba? Quem diz ao corpo já se apagando, que está terminado? O cérebro que já se terá ido? Onde está o registro do fim? O há?


            Não estou a um passo dele, estou a ele. A diferença entre a queda ao chão e a queda ao vazio, está simplesmente na direção para onde cairei. Ironicamente, tudo o que me acometeu até aqui foi colheita de meu plantio, mas agora, no zênite deste platô, a escolha é do vento que me empurra hora para o chão que piso, hora para o vazio adiante. A bem da verdade, meus pés já estão metade à frente, sem apoio, no ponto crítico do equilíbrio.


            A dor não aumenta e nem diminui, ou talvez eu é que não perceba mais se há variações. Talvez tenha me embrutecido justamente por não ter podido parar e me analisar. Ainda que parasse regularmente pelo caminho, que parâmetros eu teria para essa análise? E de que vale isso agora, se antes já não me valia? Homenagens póstumas não cicatrizam feridas. O que não foi dito ou feito até aqui, não o será mais.


            Pendendo para o abismo, puramente por força das conseqüências já plantadas, olho para ele e não, ele não olha para mim. Ele está pouco se importando comigo. Ele fará, ou não, diferença para mim, para si eu não significo mais do que mais um; não serei o derradeiro cadente em seu vão. Aliás, a escuridão infindável é clara e nítida, até mais do que a que já me contém. Em um tempo que não meço já não me contém mais.


            A ausência de pressão sob meus pés e pernas informa que a queda começou. Não é assustador como a tantos pode parecer, em verdade vos afirmo que a espera me tolhia mais a respiração. Não me atemoriza a iminência do impacto, isso é quase certo e não me desgasto mais com aquilo que não me cabe, mas se desgasta o animal que me veste e quer sobreviver a qualquer custo, bradando um grito que não ouve na vã tentativa de obter um eco que não vem. E não virá.


            Ainda que sinta o atrito cada vez mais intenso com o ar e a aceleração que me faria por para fora tudo o que tivesse em meu estômago, não há nada ao redor que possa me fazer mal. Tudo o que poderia me atormentar e ferir está dentro, não fora. E nesta solidão que já havia quando cercado por multidões, nem haveria agente externo a quem imputar qualquer culpabilidade. Ainda que pudesse fazê-lo, a culpa é apenas um expediente cruel de uma vingança eufemizada, somente o reconhecimento da responsabilidade, que poucos se dignam a assumir e levar a termo, teria os resultados que valeriam meus esforços.


            Ainda que o silêncio congelante me queime da pele até os ossos, não esboço mais qualquer reação no decorrer da queda. Chorar e sorrir se mostraram, no final das contas, a mesmíssima cousa, ambas me causam dor e cansaço que não me convém mais sentir sem a mais absoluta necessidade; até que essa queda se finde, não existe absolutamente necessidade alguma. Tudo que não seja a própria existência está indefinidamente suspenso.


            Vejo ao longe as trevas engolindo o horizonte que nem sei se existe. Talvez essas trevas se devam à cegueira e não ao ambiente, mas ainda que não seja tudo tão realmente escuro, a luz é tão tênue que não faz diferença, sequer eleva um grau em minha temperatura também cadente. Mas o que eu veria, se enxergasse, senão uma parede rochosa subindo cada vez mais rápido?


            Ainda estou caindo. Até quando eu não sei. Sinceramente, não me vale fazer cálculos sem parâmetros, se só existe agora a queda. Calcular agora não mudará o desfecho, o qual desconheço e ainda que conhecesse, não poderia evitar. É uma queda livre. Na verdade a única cota de liberdade que me foi permitido até hoje. Caio no meu tempo, do meu jeito, se vivo ou morto não importa mais. Apenas caio até o fim… se houver fim.


            A única coisa que me dói é a única certeza que tenho, e não é uma afirmativa: Quem se importa?

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