23/08/2018

O mundo a vapor


Doble E-20 Steam Special de Jay Leno
   Algumas pessoas sabem que nos primórdios do automóvel, não havia posto de gasolina. Para abastecer era preciso comprar em galões ou mesmo na pharmácia... sim, na pharmácia! Petróleo na época era considerado um cosmético e até lhe atribuíam algum poder terapêutico... Foi uma época muito louca.
A compacta caldeira do Doble E-20

    Por essa escassez de abastecimento, até a primeira grande guerra o motor a combustão interna não era unanimidade, em muitos casos os eléctricos eram preferidos, afinal rodava-se pouco e a baixíssimas velocidades naquela época. Mas a exemplo das locomotivas, também havia os carros a vapor. Não eram apenas aquelas máquinas pesadas e tratores que povoam filmes e desenhos da era clássica, eram carros de passeio, e isso durou praticamente até a quarta-feira negra.

    Em minhas buscas aleatórias eu me deparei com um leque muito amplo de carros movidos a vapor. Alguns deles se parecem muito com os carrões de sonhos dos anos 1920, a ponto de parados parecerem carros comuns. A miríade de modelos e versões me surpreendeu e alimentou minha humildade, reafirmando que eu não sei praticamente de nada sobre carros antigos; e quem tiver juízo chegará à mesma conclusão, para todas as áreas da vida.
Orout a vapor carregado um carro a combustão interna 1880s

    De início eram máquinas rudimentares com baixíssima eficiência térmica, quase sempre não excedendo os 5% que as locomotivas conseguem aproveitar da energia produzida pela queima do carvão. Entretanto, pesavam a seu favor o torque quase instantâneo e a ausência da embrenhagem. Era só aquecer a água o suficiente e liberar o vapor para o carro começar a andar. Tudo com suavidade, silêncio e ganho rápido de velocidade.

White pré primeira guerra

    Ao contrário dos carros a combustão interna da época, o funcionamento dos carros a vapor era extremamente suave e silencioso, e os gases do escapamento nem de longe incomodavam como os da gasolina. Provavelmente por lembrarem o cheiro de uma lareira acesa, por algum tempo a combustão externa prosperou e teve seus avanços tecnológicos. Falar de carro barato na época é piada, mas havia dos modelos mais simples e rudimentares aos mais sofisticados, como é até hoje com os carros ciclo Otto, e até com os eléctricos.
Um frugal Stanley pré primeira guerra

    Até a primeira guerra os motores a combustão interna eram rudimentares, trabalhando com baixíssimas pressões e velocidades idem. Para terem uma idéia, muitos usavam pavios acesos em vez de velas eléctricas para queimar o combustível. Sim, um pavio, um pedaço de corda como o de uma vela de parafina, nele se colocava fogo, se tampava o motor e então se dava a partida por manivela. E cuidado para não apagar o pavio, senão começa tudo de novo. Em suma, as máquinas a vapor deviam muito em eficiência, mas não em eficácia aos motores a combustão interna. Carros a vapor ultrapassavam facilmente os a gasolina do começo do século XX.

    Enquanto os tratores, escavadeiras e outras máquinas pesadas ainda se pareciam muito com locomotivas caricaturadas, carros e caminhões tomaram rapidamente formatos próprios, acompanhando a evolução estilística de seus correspondentes eléctricos e a combustão interna. O desperdício de vapor para o meio ambiente e o manuseio do carvão em brasa, quando se estacionava o carro, eram um problema sério. Não para locomotivas, navios e enormes máquinas de trabalho fora de estrada, mas faziam alguns donos olharem com mais simpatia para os ainda primitivos motores a gasolina.

Um modernoso Lorry Super Sentinel anos 1900

    Os riscos de a caldeira estourar eram os mesmos de uma locomotiva, e a inflamabilidade do pó de carvão em suspensão, em caso de acidente, eram notórios. Enfim, os prós superaram os contras por muito mais tempo do que os leigos imaginam, inclusive eu. A morte comercial dos carros a vapor não veio antes da quebra da bolsa de Nova Iorque, eles evoluíram muito rapidamente.
Pontiac 1970 convertido para combustão externa

    Com o tempo, os mais sofisticados se serviram de soluções que aumentavam a eficácia e a praticidade, as caldeiras ficaram menores e o manuseio mais prático. Utilizando o mesmo princípio de resfriamento dos motores a gasolina, o ciclo Otto, os carros a vapor se valeram de radiadores belamente emoldurados para coletar, resfriar e condensar boa parte do vapor que saía do motor, devolvendo a água ao tanque.

    Chegaram a fazer até um avião a vapor viável e, ainda hoje inédito, com marcha ré na hélice. Girar em sentido único é uma limitação do motor de ciclo Otto.

    O motor, aliás, deixava de ser um mero conjunto de cilindros avulsos, eles passaram a trabalhar dentro do mesmo bloco, como os motores Otto. Seguramente o ridículo índice de 5% de eficiência foi superado, nos últimos anos da indústria automotiva a vapor. O problema para esses motores, é que os Otto já estavam em um patamar evolutivo muito superior, um motor ruim ultrapassava os 15% de eficiência, e comer poeira de carro a vapor não era mais uma certeza, principalmente em trajetos longos, com a rede de reabastecimento proliferando pelas estradas.

Doble Steam carroceria Murphy Phaeton 1924

    A memória da mobilidade a vapor é preservada por gente que ama e entende do assunto. A Inglaterra reúne o maior séquito de entusiastas e colecionadores. Há inclusive gente que fabrica modelos em escala funcionais de locomotivas, tratores e caminhões a vapor do início do século passado. Há inclusive gente que adapta motores a vapor em carros convencionais. Bizarro? Mas há não só quem faça, mas também, ensina letargicamente a quem quiser aprender.

Chassi do Doble E-20, talvez o melhor carro a vapor já produzido

    Se há uma vantagem do motor a vapor sobre o a combustão, é sua comparativa extrema simplicidade, o que o torna fácil de projectar e construir sem necessidade de maquinários sofisticados, na verdade muitas peças de motor a combustão ou compressores de ar podem ser e são utilizadas por esses inventores. Com a tecnologia de hoje, especialmente o monitoramento electrônico em tempo real das funções da máquina, isolamentos mais eficientes, lubrificação moderna e usinagem de ponta, reciclagem do vapor, aproveitamento de resíduos para a combustão, enfim... um motor a vapor conseguiria ser economicamente viável.

    Para regiões desprovidas de recursos financeiros e com limitações de potencial hídrico, uma máquina a vapor resolveria muitos, mas muitos problemas. Enfim, se até os dirigíveis estão voltando, para fins turísticos, e as locomotivas clássicas sendo restauradas para uso normal, por que não?

    Para saber mais: Fusca a vapor aqui, site sobre máquinas a vapor aqui, uma associação dedicada à máquina a vapor aqui e o avião a vapor aqui com vídeo da época.

Dois belos vídeos da garagem do abusado do Jay Leno

Mais um.

2 comentários:

Xracer disse...

Muito interessante e legal esse post sobre os carros a vapor e ate aviao !

Obrigado tambem porque deixaste ai os links para podermos enveredarmos mais nesse assunto, pouco abordado !

Nanael Soubaim disse...

Às ordens!