22/01/2015

Da força bruta

  Desde que começaram a lascar pedras, qualquer pessoa franzina consegue enfrentar um animal mais pesado do que ela, se defender dele e ainda conseguir alimento. Lançando essa pedra com a extensão estabilizadora e potencializadora de um cabo, que nem precisa ser muito retilíneo, o confronto nem precisa acontecer, o sujeito pode simplesmente lançar com a melhor técnica que puder e aumentar suas chances de sobrevivência e a de sua prole. Não só caça, mas também pesca e até derrubar frutas em galhos muito altos, que quase sempre são as melhores.

  De então em diante, qualquer pessoa pode também se defender de outras pessoas bem mais fortes, porque contra uma ponta perfurocortante a força física não significa nada. Até uma criança bem treinada consegue defender os irmãos menores e até os idosos, fazendo os valentões pensarem duas vezes, antes de atentarem contra eles. Mesmo as pessoas de compleição e modos mais delicados conseguem repelir machões embrutecidos.

  Desde que se criou a primeira arte marcial, a força física perdeu quase todo o seu apelo. Falo por experiência própria, já pratiquei judô, lutava com grandalhões com o dobro do meu tamanho. Um praticante devidamente treinado e motivado consegue expulsar uma gangue inteira, ainda que portem armas brancas, quiçá até armas de fogo, dependendo do grau de evolução técnica e (acreditem, em artes marciais isso existe sim) espiritual do praticante. A esbelta Twiggy seria capaz de nocautear qualquer grandalhão marombado e cheio de bomba, se tivesse treinamento e disciplina para tanto.

  Ainda que o agressor também conhecesse artes marciais, a iniciativa da agressão o deixaria vulnerável, ele se exporia às maravilhas que uma boa alavanca é capaz de fazer por um corpo franzino. Não adianta me olharem com essas de "cala boca Deus, que eu sou macho". Há muitas, mas muitas partes do corpo que jamais se fortalecem, não importa o quanto se treine e encha o corpo de músculos, as partes vitais SEMPRE serão sensíveis, e a iniciativa da agressão as expõe. Um murro na base do maxilar, logo abaixo da orelha, pode até causar uma breve parada respiratória, bem como alucinações e perda de consciência. Agarre uma donzela delicada para ver, essa e outras partes ficam vulneráveis.

  Desde que inventaram o escambo, que ninguém precisa se arriscar muito para sobreviver. As pessoas passaram a estocar o excedente, em vez de abandonar ou deixar estragar, o que garantiu suprimentos em épocas difíceis, como o inverno. Já não era necessário sair todos os dias e arriscar ser morto pela caça ou devorado por um predador natural. O escambo inventou o comércio, para o bem e para o mal, tornando o cérebro mais precioso do que os músculos, para a subsistência. Assim, até uma criança bem instruída consegue seu sustento, caso os pais faltem.

  Com o comércio veio a necessidade de aprimoramento técnico e a brutalidade cedeu de vez lugar à inteligência. Isso não desobrigou as pessoas de cuidarem da boa forma, mas já não era necessário sair sem saber se voltava da caça, afinal uma das técnicas geradas foi a agropecuária, o alimento estava logo ali, bastava negociar. E como diz o ditado, quem quer comércio, não quer guerra; embora uns imbecís de mentalidade pubiana teimem em vestir máscaras de homens sérios para estragar a festa.

  Desde que descobriram a ciência, quase ninguém mais precisa se arriscar em terreno desconhecido, o conhecimento prévio repassado e aprimorado já poupa as pessoas de riscos desnecessários, então uma personalidade de agressividade animalesca não faz mais sentido. Até porque esse tipo de personalidade é de uma inconseqüência suicida, ela não se importa realmente com o grupo, só com a própria satisfação. Com a ciência, o aprimoramento técnico ganhou impulso em todas as áreas, as armas, as artes marciais, o comércio e a nascente tecnologia.

  Morrer esmagado por uma pedra gigantesca não era mais um risco aceitável, já havia alavancas sofisticadas para minimizar os riscos, assim como possibilitar erguer pesos que ninguém nem tentava. Qualquer corpo mediano passou a fazer o trabalho de vários empelotados de músculos, especialmente quando os animais se tornaram motores vivos dessas alavancas. Uma moça franzina já conseguia levar dezenas de litros para casa sem depender de canalhas oportunistas.

  Desde que nasceu a philosophia, a mente humana começou a se livrar das amarras animais que ainda nos prendiam à pré-história. O aqui e agora passou a ater outros significados, o conhecimento foi refinado, a ciência tornou-se uma ferramenta plena, as artes marciais passaram a ser também formadoras de caráter e as armas, mesmo co  o potencial letal, se tornaram também potencializadores do desenvolvimento psicológico e espiritual. O medo começou a ser dominado e as pessoas que aderiram, passaram a evoluir activamente, não apenas moldadas pela necessidade do ambiente.

  Daí nasceu a máxima da mente sã em corpo são, porque um depende do outro para cumprir com seu papel. Quem se concentra apenas em um deles, se torna um fanático nessa área e só causa problemas, jurando que é o único portador da verdade absoluta e inquestionável. Alguém com as faculdades psicológicas e físicas em harmonia e boas condições, consegue extrair da vida o máximo do que ela tem a oferecer, consegue até mesmo viver com menos, ainda que seu senso de civilidade e gosto refinado acumulem muito; sabe que não farão falta se forem subtraídos.

  Um caminhão não precisa fazer careta, ele pode até ter cara de ursinho carinhoso, sua força bruta e sua capacidade de carga não mudam com isso. Um trator com um desenho agradável não se torna menos poderoso. Uma locomotiva é provavelmente a máquina mais poderosa do mundo, mas qualquer magricela pode tomar o comando e ser seu amo e senhor.

  Com essa realidade, de que servem então a agressividade e a força bruta? Se não for para ajudar e defender os mais fracos, para absolutamente nada. Em si, elas só atrapalham, pois mesmo entre os animais selvagens existem códigos de conduta e até civilidade; onde houver mais de um, eles são necessários, assim como onde há mais de um há um Estado, por mais rudimentar que se apresente.

  Pois bem, mesmo com mil séculos transcorridos, ainda há gente usando os frutos de toda essa evolução para se considerar melhor do que as mulheres, para desdenharem e atacarem demonstrações de apreço, fazer tudo o que teria levado nossa espécie arracial à extinção em poucos milênios, se não tivéssemos deixado paulatinamente de lado tudo aquilo. Chegam a negar a história da heroína Maria Quitéria (esta moça aqui) que foi abandonada pelo comando assim que a guerra terminou. Só para se enganarem que são superiores a alguém, como se a internet que usam para espalhar esterco, não fosse devida à Hedy Lamarr, que simplesmente deu um golpe tecnológico de misericórdia na marinha nazista.

  Eu não sou "ista" de espécie alguma, é idiotice uma pessoa livre aceitar rótulos, como se fosse uma garrafa de refrigerante. Só posso assegurar que eu tenho muitas, mas muitas saudades da época em que a humanidade errava tentando acertar, em vez de louvar os erros já consagrados. Isso não se aplica a um grupo específico. Serve também para sujeitos que se consideram intelectuais, que berram por direitos e liberdades, mas babam por ditaduras sangrentas de tiranos implacáveis, que primam justo pela supressão do indivíduo, tal qual a mentalidade pré-histórica. Todos fazem, na prática, a mesmíssima merda.

Nenhum comentário: