18/10/2014

O destino de Catharina Roque


  Ele chega com a filha ao prédio, um casarão dos anos quarenta que estava para ser demolido, quando uma mulher maluca fez uma oferta por aquele mocó gigante. Com ajuda de voluntários, ela reformou e deixou como novo o imóvel, encheu os jardins com flores e árvores frutíferas e, não bastasse isso, transformou em praça o lote baldio ao qual a prefeitura se recusava terminantemente a dar destinação. Quase trinta anos passados desde então, a praça foi oficializada e batizada com o nome de um vereador qualquer. O facto é que as casas ao redor e próximas não demoraram muito a ter os mesmos cuidados.

  É tudo muito bonito, muito bem organizado, muito calmo e o clima muito aprazível. Não parece que estão na São Paulo que já sofre com as conseqüências das décadas de impermeabilização. O portão está aberto, a escola de pedagogia estranha está em pleno funcionamento, mesmo nesta tarde de sábado. Os dois entram, ele emocionado, toca à filha a função de pedir informações e tratar do assunto. Ainda hoje lhe dói ter lido "Dona de escola é agredida por radicais de igreja" em um jornal. Quase chorou quando viu o nome da vítima, porque hoje ela é uma anciã, deve ter mais de oitenta anos. Se bem que ele em seus setenta não é mais aquele garotinho que desafiava colegas para brigas atrás da igreja.

  A escassez de formalidades está em todos os cantos, embora isso não signifique carência de disciplina. Lembra-se bem, o bom comportamento e o excesso de felicidade que ela conseguia em sua turma, era demais para as encruadas que exerciam indevidamente a profissão de professora. Quando ela se foi, por não poder mais ensinar como fazia e para assumir seu amor, sua turma começou a evadir e os poucos que ficaram pareciam ser gênios perto dos outros alunos, porque tinham aprendido a raciocinar e tinham fome de conhecimento. As aulas passaram a ser não só enfadonhas, como irritantes, ele chegou a ser expulso de sala por ter gritado com a professora e a chamado de imbecil.

  O tempo provou que sua linda professora estava certa, com o frescor pedagógico que havia levado à cidade. era uma lufada de ar fresco em uma cidade que não dava perspectiva nenhuma aos seus jovens. Mas era tarde e ninguém mais teve coragem para fazer as coisas do jeito certo, só seguia o roteiro medíocre de uma grade pífia. Hoje ele volta a ver crianças aprendendo aritmética estudando geografia, certamente caprichando na caligraphia e na boa gramática. Pela janela do corredor vê crianças aprendendo biologia no meio do jardim, enquanto desenham e fazem anotações, aprendendo mais e melhor vários tópicos ao mesmo tempo, como era com a sua turma.

  Ele tem uma ligeira queda de pressão quando vê uma moça com vinte e poucos anos saindo do pequeno teatro com seus alunos. Decerto que não é ela, mas é ela esculpida em carrara. Balbucia "Professora Catharina" um pouco alto demais para um simples balbuciado e ela ouve...

- Oi, boa tarde. Estão procurando a minha avó?

  A filha do ancião explica a situação, conta um resumo do que sabe da história e a jovem professora não se agüenta...

- PACHEQUINHO!! Meu Deus, você existe! Minha avó não pára de falar de você! Vó!

  Ela pede que a turma vá para a sala e entra em outra, onde se demora pouco e de onde sai com uma anciã. É ela, aqueles trejeitos não têm similar. Os olhos serelepes e gulosos o analisam do ápice à base, detrás de óculos de cuja armação não sabe contar as cores. Apesar das marcas do tempo, todos os traços que conheceu na infância estão lá. Ela pisca um olho, faz um sorriso torto e debochado e corre para o abraço. Está mais ágil e lúcida do que seu ex-aluno. Ela os leva para sua sala, que mais parece uma sala de estar, e começa a falar, contar dos bastidores de sua fuga da cidade, a vida que enfrentou depois, a viuvez ainda jovem e as dificuldades para criar os três filhos. Só o que não perdeu com as escolhas que fez, foi a coragem. Apesar de tudo, de nada se arrepende. Mas fala puco de si, pergunta por ele, pela moça bonita que o acompanha, quer saber tudo.

  Ele conta uma história mais triste, com menos coragem e mais tragédias. Arranca algumas lágrimas da ex-professora com relatos de mortes trágicas, de ex-professoras que enlouqueceram e viraram prostitutas, da turma que há uns sessenta anos não vê. Mas também fala da família, esposa, os três filhos encarreirados mais a temporona que o acompanha. Todos encaminhados e tocando suas vidas com dignidade. Fala ainda do início difícil da carreira de psiquiatra em um mercado saturado, dos anos amargos de divã vazio até se lembrar das aulas de sua professora, e as adaptar ao seu trabalho. Foi assim que fez sua clientela e sua fama profissional.

  Ela faz questão de apresentar o psiquiatra à família, toda ela trabalhando na escola, e aos alunos. Quer mostrar a todos o que podem se tornar, se não desistirem se seus sonhos e tiverem coragem de correr atrás deles. Consegue mais dois para o elenco de sua escola. Como queria esfregar isso nas caras daquelas quengas que saíram do armário, mas acha que não vale à pena descer ao inferno só para isso.

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