01/08/2014

Rafaela está apaixonada

Dita Von Teese no dia a dia

Ninguém a reconheceu de pronto, ela estava completamente diferente do que se acostumaram a vê-la. A jovialidade, a leveza e o frescor que exalava eram quase constrangedores. Rafaela entra no shopping e vai directo à loja preferida do marido, depois à sua loja preferida. Sai, entra em sua Fiat Elba Weekend velha de guerra e vai comprar algo para uma refeição digna de um rei. É um carro de estimação, foi o primeiro que ela comprou na vida. As amigas já foram alertadas a respeito, mas ela evita a maioria delas, na verdade não quer mais saber de uma parcela considerável. Encontra sua irmã no mercado central...

- Podemos conversar?
A leva para uma lanchonete, onde divide um empadão com ela. Espera que coma, que tome o suco de acerola, que suspire três vezes seguidas e tasca a pergunta...
- É outro?
- Hein?
- Você arranjou outro?
- Milena, que juízo é esse a meu respeito??
- Eu é que pergunto, cadê a irmã rabugenta, apagada e grossa que eu tinha até ontem? Não que eu sinta falta dela, já foi tarde.
- Oh, isso...

Os olhos  dela voltam a brilhar como na adolescência. Ela conta em regime de confidência, para não atiçar a sanha das invejosas. Ontem Ronaldo chegou bêbado, quase à meia-noite e foi recebido com a rispidez de sempre, mas daquela vez ela estava muito cansada para bater e xingar, então simplesmente o ajudou a ir para a cama, jurando que na manhã seguinte ele passearia de ambulância. Ele começou a protestar, quando sapatos e paletó foram tirados, sem que ela discernisse o que lhe dizia, até que afrouxou o cinto, desabotoou as calças e ele, em um esforço heroico, conseguiu balbuciar entre soluços "Moça, por favor, não faz isso... Eu sou casado, minha mulher tá me esperando"... Ela conta que de início ficou chocada, pois sabia que todos os amigos dele, maridos de suas amigas, traíam suas esposas com alguma regularidade, era tão regular que quase descaracterizava traição, era quase uma concessão matrimonial para evitar brigas. Ele, que andava com aquela turma desde menino, acabou levando a mesma fama, mas ela não era do tipo que engolia isso e as brigas começaram cedo, até quase chegar ao divórcio, até aquela noite...

- Eu o deitei do jeito de estava, o cobri para não sentir frio e fiquei observando até ele dormir...
- Putz, cara! Mas vem cá... Não tinha mancha, perfume... Nada?
- Não... Só vestígios, porque aquele bar, você sabe... Quando ele dormiu, eu me deitei ao lado dele... Que sonho maravilhoso! Meu Deus, eu acho que desde a adolescência que não sonhava assim!

Conta do desjejum que preparou para ele, da arrumação que fez na casa, dos filhos estranhando tudo aquilo, dos passarinhos verdes cantando ópera. Se arrumou pela primeira vez em seis anos, e caprichou, inspirada na diva Dita Von Teese. Apesar de ser dois anos mais velha e muito mais maltratada pela vida, agora ela parece ser filha da irmã. Concluiu de uma tacada só que as fofoqueiras com quem conversava têm é muita inveja de ele jamais ter sido flagrado com outra, e não o foi simplesmente porque não acredita que a tenha traído, e dane-se quem não acreditar nisso, ela acredita e está irreversivelmente apaixonada pelo marido.

A irmã a acompanha às compras para o jantar. É inevitável, todo mundo a conhece e todo mundo nota a diferença gritante, mal acreditando que seja a mesma Rafaela de ontem. Ela anda em passos leves, circulares, se equilibrando magistralmente nos saltos que não usava há anos, espalhando seu perfume floral pelos corredores entre as bancas. Está jovial, feminina, com jeito de jovem que acabou de conhecer o primeiro amor. Mostra discretamente à irmã, que amarga a inversão se sentindo feia perto dela, a gravata com micro estampas douradas do logo da Chevrolet no fundo preto, noutra sacola a lingerie para logo mais à noite.

De longe, as que ainda não sabem ser ex-amigas a observam, se remoendo de inveja, se perguntando quem será o amante hiper dotado que ela arranjou para acordar assim. Ela está absolutamente linda, com o frescor facial que todas perderam ainda na adolescência. Acham um absurdo que alguém seja tão feliz. Mas ela está e quer distância delas. O sorriso emoldurado naquele batom a faz parecer tudo, menos uma mãe de família a caminho do jubileu de ouro. E não é um sorriso de mulher calejada, é sorriso de garota apaixonada, displicente e cheia de esperanças para o porvir. Parece ser filha de si mesma, provavelmente sua filha vai se constranger em andar com uma mãe tão linda e radiante, mas terá que se acostumar.

Conversam dentro do carro, com a irmã notando seu tom de voz completamente mudado. Vê flores em cada palavra. Em dado momento ela não segura o "Mi, eu estou apaixonada!". Agora ela também começa a ter um pouco de inveja da irmã mais velha. Quando chegam, lá está ele, estupefato após o filho ter lhe dito o que aconteceu naquela casa, que era a antessala do umbral e agora está às portas do sétimo céu. Ele a vê se saindo do carro, com um olhar malicioso, decidida a seduzi-lo, a caminhar com a classe de uma dama e a leveza de uma menina, em passos semicirculares, requebrando suavemente. Ele baba, fica mole, está hipnotizado. Se lembra de ter vivido algo parecido, mas foi há muitos e muitos anos, quando ainda tinha esperanças de ter uma vida adulta feliz e bem resolvida; a esperança acabou de voltar. Ela limpa a baba que escorria, o agarra pelo pescoço, junta narizes e testas, solta um "Eu te amo" com uma voz sedosa e em volume só percebido por ele, então dá o bote. O beija como jamais até então. Agora é tarde. A presa acaba de ser abatida.

Mudam-se em menos de um mês, para não terem mais que ver aquela vizinhança amarga, mas especialmente das cobras que envenenaram suas cabeças, só dando o novo endereço a quem realmente interessa que saiba. O casamento de comercial de margarina com que sonhavam na juventude, agora é realidade.

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