05/06/2014

Vai pôr o quê no lugar?


  Um psiquiatra experiente e calejado passa pelo consultório de um colega, durante uma de seus momentos peripatéticos. A porta escancarada o permitiu vê-lo mexendo em uma estrutura assaz delicada, quase instável. Ele espera que o outro tire as mãos, bate na porta e entra...

- O que está fazendo com esta personalidade?
- Hein? Oi! Estou retirando alguns elementos perniciosos.
- Quais?
- Alguns sem importância, que só servem de peso morto, mas principalmente a depressão.
- E o que vai colocar no lugar?
- Não sei ainda, mas tenho umas caixas de alegria sobrando.
- Não servem neste caso. Está vendo? A depressão é muito austera, tem formas muito bem definidas e encaixes muito precisos, a alegria se contrai e dilata bastante, logo causaria mais estragos dom que os resolvidos.

  Ele concorda. Pensa um pouco, pega o paquímetro, mede, verifica a rugosidade da superfície e se senta com a mão no queixo. Pede a ajuda do colega mais velho e vai consultar os manuais. Há uma série de combinações que podem substituir a depressão, mas nenhuma peça isolada o faz a contento. Isso o surpreende muito, não imaginava que a maldita se instalasse com tamanha eficiência. Devolve-a à personalidade, após lubrificar um pouco para reduzir o desgaste e vai estudar melhor o assunto.

  Vão à biblioteca, ver se os anais têm algo a dizer a respeito. A surpresa vem com algumas positivas estranhas. Todas relatam casos em que a retirada de uma patologia importante, tornou o paciente dependente de medicamentos para estabilizar seu comportamento. Parece um absurdo, mas a retirada pura e simples da depressão causou males maiores do que os que ela causava. Aprofundam as investigações e descobrem que os pacientes em questão eram bastante específicos, alguns profissionais descreveram que a depressão parecia ter sido cristalizada, tamanha a sua consistência...

- Não é o caso daquela personalidade em que você estava mexendo?
- Sim, é. "Cristalização"... Isso sugere então que aquele desvio ou patologia se tornou um traço da personalidade, já faz parte dela... Que absurdo!
- Por que? Só porque é o oposto de alegria, em princípio?
- A sociabilidade de uma pessoa deprimida fica muito prejudicada!
- A de uma pessoa eufórica também, mas as pessoas associam erroneamente a euforia à felicidade. Vou contar o caso de uma paciente que quase cometeu suicídio, só não o fez porque eu passava no local por acaso e evitei que se jogasse na frente de um trem. Eu acreditava que a tivesse curado, porque não dava mais os sinais claros de depressão que apresentava. Alguns dias depois ela retomou o tratamento, com o tempo eu percebi que esse padrão que adoptamos para definir a felicidade, é tão falso quanto uma nota de cinqüenta centavos. Essa paciente é uma pessoa introspectiva, que gosta muito de momentos de solidão e meditação. A depressão dela, por mais que causasse algumas dores e incomodasse a família, a ajudava a se isolar um pouco de um mundo cheio de gente, mas bem pobre em companhias. Sabe aqueles casos de filhinhos de papai que vivem em farras, boates, haves e estão eternamente insatisfeitos?
- Ô se sei! Já tive uma penca deles no meu divã! Que desperdício de cromossomos!
- Pois é. O que eles fazem por conta própria e na marra, é mais ou menos  que você tentava fazer há pouco, mas com critério científico. Você sabia que eu sou depressivo?
- Sério?! Não parece, você está sempre tão... Desculpe, estou estereotipando de novo!
- Eu entendo. A questão é que mesmo o oxigênio é altamente tóxico, provavelmente há vidas alienígenas que não sobreviveriam na nossa atmosphera. A diferença é que nós precisamos desse gás corrosivo e nos adaptamos pra sobreviver a ele.
- E mesmo assim ele produz radicais livres!
- Pois é, mas dependemos dele! O que fazer então? Cortar o oxigênio? A depressão é também uma defesa do subconsciente de pessoas que prezam os momentos de introspecção. Já ouviu falar daquela frase "Quero a companhia de quem respeita a minha solidão"? A maioria das pessoas não respeita. Se você vai a uma festa, por consideração ao homenageado, ninguém aceita te ver na varanda ou sentado à mesa. Querem te meter no meio da muvuca de qualquer jeito e, o que é pior, querem te ver se arreganhando todo para uma photo que vai parar inevitavelmente em redes sociais.
- Pra todo mundo ver como eles estão felizes.
- É, isso mesmo! Eu aprendi com essa paciente que o excesso de exposição pode desencadear a depressão, e que ela, como diz este artigo, pode se cristalizar em pouco tempo, sem que o paciente e nem mesmo o médico percebam.

  Faz-se uma pausa para meditação a respeito. Quando se dão conta, estão usufruindo justo da introspecção de que fala o artigo. Começam a reler e apontar alguns trechos mais interessantes. O mais velho se lembra de alguns detalhes importantes da paciente citada e dá uma sugestão...

- Que tal colocar uma capa de serenidade na depressão?
- Como? Já é tão justo no lugar onde está!
- Sim, mas serenidade é uma resina, ela seca com o tempo e forma uma película muito fina, que a maioria nem percebe, mas disfarça bem sintomas tidos como indesejáveis, mas que sustentam toda uma estrutura psicológica, como aquela depressão do seu paciente.
- Serenidade demora a formar liga.
- Demora. Demora, mas é eficaz. A depressão deixa de ser um incômodo e passa a ser uma bengala, que o paciente usa quando estiver muito difícil caminhar. Além do mais, já vimos que uma euforia não dá absolutamente nenhuma garantia que que o cidadão não vai estourar seus miolos. Ninguém é perfeito, não se pode exigir que uma pessoa seja alegre e expansiva o tempo todo! Se brincar, muita alegria por mais do que metade do tempo, gera mais depressão e aí sim, o suicídio é questão de um toque mal dado. Pega esse manual de instruções e vai ajustar a depressão daquela personalidade.
- E você?
- Eu? Eu já me acostumei com a minha, sei lidar com ela. Agora com licença, vou voltar à minha introspecção.

  Diz e volta ao caminho do jardim, enquanto o colega vai reestruturar aquela personalidade. E não é que a resina entrou direitinho em todos os cantos?

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