09/05/2014

O Lafer mandou um beijo

  Ana fechou o aplicativo após três horas seguidas sem sequer olhar para os lados. Já era tão aficionada
que andava com uma extensão para ligar o tablet a uma tomada, para não ficar sem bateria. Ela dormiu mal e acordou de mau humor. Foi se arrumar para mais um dia de trabalho, comeu algo que esquentou no microondas e saiu. Nas mãos lá estava o tablet. Ela tem carro, um belo MP Lafer vermelho com capota caramelo, mas não pode usar aquele aparelho ao volante, então vai de metrô para o emprego.

  Verificando o facebook, vê um monte de contactos rindo de um vídeo que não verá por enquanto, precisa ter um mínimo de atenção para saltar no ponto certo. Desce na Luz, se esgueira no meio da multidão e da saída vê o escritório. Gosta de acordar cedo porque o transporte público é menos ultrajante nesse horário, acordava cedo assim mesmo quando dirigia (faz meses) seu belo carrinho, para não se irritar no transito caótico. Vai com um olho na rua e outro no tablet.

  Chega ao emprego e nota que as pessoas começam a rir quando passa. Não dá muita trela, deve ter vestido a blusa pelo avesso de novo. Virou hábito. Senta-se, liga o computador, pluga o tablet e põe um olho em cada. Para tudo responde com monossílabos. Às vezes só resmunga um pouco e continua dividindo as atenções. São conversas animadas com gente que nem sabe que voz tem, mas a quem ouve só dá monossilábicos. Consegue produzir bem, por isso a chefia ainda não a incomodou.

  Entretanto os sons de risadas começam a incomodar. Ela vai ao toilette desvirar logo essa blusa e acabar com a farofa. Só que ela não está com a blusa virada. Na realidade faz calor, só agora vê que está usando sua regata com a estampa da Cacilda Becker. O jeans não está pelo avesso. Fez a besteira de não usar a maquiagem neste outono cruel, mas não deve ser isso! Os tênis não estão trocados, são os bons e velhos All Star pretos de cadarços brancos. Vai ver o penteado, então se lembra que mandou cortar no limite, porque não tinha mais paciência para pentear, queria aplicar todo o tempo possível nas conversas virtuais.

  Abre a boca, põe a língua para fora, vê se estava sentada em um banco molhado, se tem chiclete grudado na bunda, se os mamilos estão aparecendo (já teve um episódio constrangedor, eles são grandes) e não vê anormalidades... Tá, nem todos têm cabelos cor de cereja, mas isso não é motivo!

  Volta insegura ao posto de trabalho. Os colegas se aproximam, começam a falar todos ao mesmo tempo com "Cara, como você consegue?", "Foi gostoso?", "Fumou o quê, Ana?" e outros do tipo. O constrangimento só passa quando um colega tenta dar um beijo e recebe um gancho de direita que o manda para o mundo de Morpheus. O chefe vê tudo e a chama. Ela vai de queixo erguido, certa de que está com a razão.

  Ele, antes de mais nada, elogia o desempenho, seu senso de responsabilidade e diz que pode ter um futuro brilhante na companhia. Respira fundo, a olha nos olhos e solta que sabe o motivo de todos estarem rindo de si. Ele diz que vê pelas câmeras de segurança, há dias, colegas a abraçando, tentando puxar conversa, mas ela parece estar no mundo da lua. Ele afirma categoricamente que muitos colegas a alisaram, abraçaram e ela sequer esboçou reação.

  Ana vê o vídeo de algumas cenas e passa a se sentir péssima. Os colegas a trataram com muito calor humano e ela parecia uma geladeira. Mas não é por isso que riem. Ele fecha as persianas e mostra o vídeo que já foi compartilhado por mais de um milhão de usuários, pelo quê já é impossível tirá-lo da internet. Ela a apoia, diz para ser forte e roda. Ela vê uma cena em que estava na clínica, para um exame de rotina. A médica avisara que se atrasaria muito, então ela ligou o maldito tablet, que jurara deixar na bolsa, e se desligou do mundo.

  De início os outros apenas brincavam de abanar, fazer palhaçadas na sua frente e cutucar. Mas logo um mais atrevido se aproximou e ela não o percebeu, não se lembra dele nem da cena. Estava tão anertesiada, que ele ficou a vontade e todos pensaram ser um namorado, porque a abraçou com delicadeza, depois a alisou, beijou seu rosto, lhe tocou os seios, e ela não tinha sentido absolutamente nada. Quando a médica chegou, ele já tinha saído, após dizer "Nos vemos na cama, meu amor".

  O choro escandaloso e cheio de raiva invade a sala do gerente. Desta vez por quem a apoia, ela se deixa abraçar e desabafa. Está sentindo raiva do desconhecido, sim, mas principalmente de si. Se sente idiota, absolutamente idiota. Assim que o choro passa, o que fez os colegas se sentirem envergonhados, pelo menos isso, ele a leva para o banheiro privativo e lhe mostra o espelho, pede que se veja bem e exibe uma photographia da festa de aniversário da companhia, em Dezembro passado. Ela, uma otaku, usava cabelo cor de rosa, mas era uma cabeleira bem tratada e a pele estava bem mais corada e hidratada, além das olheiras que apareceram pelo excesso de uso daquele aparelho...

- Você até vendeu seu carro pra não ter que deixar de usar esse tablet!
- Que carro??
- Você não se lembra?! Aquele Lafer vermelho... Ana, acorda pra vida!

  Agora ela se lembra. Olha a bolsa, vê alguns chocolates que fixaram residência, camisinhas que há meses não usa e a miniatura de Lafer que usa como chaveiro. Lá está a chave do seu carro. Carro com que sonhou por anos e ganhou dos pais e irmãos, por ter se formado. Ele propõe que tire esta sexta-feira de folga remunerada, que vá para casa e medite, mas principalmente que volte a viver! Que tire aquele Lafer da garagem, baixe a capota e saia sem destino para não se esquecer que vive em uma das metrópoles mais importantes do mundo. Mas que deixe aquela porcaria transistorizada lá, desligada, para se esquecer um pouco do mundo de faz de conta que é uma rede social.

  Ela sai confusa e abatida. Olha para os lados, não só para localizar algum palhaço, mas também porque está meio perdida, está acostumada a fazer o percurso olhando para aquele aparelho, instintivamente, ter que se guiar visualmente já estava se tornando uma habilidade atrofiada. Se guia pelas placas e por alguns ruídos característicos. Sempre leu gente reclamando de São Paulo, então se surpreende em ver que tem algumas belezas, se espanta ao ver algumas mulheres passeando com seus rebentos, felizes com algum doce nas mãos.

  Pelas placas chega ao metrô, pelas placas vê qual precisa pegar, pelas placas vê onde deve descer, pelas placas consegue chegar ao condomínio. Que tristeza, precisa pegar a chave de casa para ver em que apartamento mora! Que vergonha! Olha para as caixas de correio e vê uma com o mesmo número da chave, abre e está lotada, inclusive com cartas da mãe! Meu Deus, que tipo de gente manda cartas em plena era de paranoia cibernética? Pois Dona Amanda escreve! Sobe, entra, tranca a porta e chora. Agora a mente começa a fica clara. Abre as cartas e começa a ler. A mãe reclama de não ter respostas, de ela não atender ao maldito celular, que está ficando aflita! Pega o aparelho e vê dezenas de ligações perdidas, muitas da mãe...

- Mãe? Sou eu! Posso passar o fim de semana com vocês?

  A mulher faz uma farra em casa. Ana toma um banho, se arruma direito e desce. Lá está ele. Empoeirado, fazendo cara de emburrado e ciumento, como se perguntasse onde está o namorado novo. Ela desativa o alarme, abre a porta, baixa a capota e ele entende. Pega de primeira e vai com ela para Guarulhos.


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