21/03/2014

O líder carismático

   Esta é uma carta aberta à posteridade. Exibo nela a engenharia da situação em que o mundo está imerso, para que vocês compreendam o que está acontecendo nesta época. Não tenho qualquer viés ideológico, me livrei disso ainda jovem, então me reservo o direito e dever de não citar nomes, pois a situação é generalizada e todo o planeta está metido nisso. Este texto é resultado da observação pessoal, após a análise das linhas de força que compõe a conjuntura política do contemporâneo. Tudo o que quero com ele, é que vocês, seja que época for a sua, não caiam nas armadilhas das cartilhas prontas de grupos organizados, sejam eles de lado forem. Eles sabem seduzir melhor do que uma meretriz.

   O carisma é a chave mais utilizada para abrir caminho, eles sabem como usá-lo. É uma estratégia muito comum entre pessoas muito vaidosas, especialmente as que têm tendências messiânicas. Estes são os piores, porque realmente acreditam que têm o direito e o dever de tomar todo o poder em suas mãos e liderar a massa, nem passa por suas cabeças que um dia vão morrer e que as pessoas podem estar demasiadamente acostumadas, e acomodadas, à sua liderança.

   A característica básica dessa gente, é o sorriso terno ao se dirigir ao seu público. O indivíduo se vê como pai ou mãe de todas aquelas pessoas, inclusive com os direitos inerentes, para tanto as regras formais passam a ter valores subjetivo, só valendo se, quando e enquanto estiverem de acordo com suas intenções. Devo frisar que para ele, as suas intenções são sempre as mais nobres e as mais adequadas à situação. Qualquer estudo científico em contrário é atropelado.

   O contrário também acontece, quando sua face chega a se desfigurar ao tratar de desafetos, de situações de contrariedade, ou ainda quando se sente traído. A livre expressão torna-se rapidamente um incômodo e seus praticantes são facilmente enquadrados como ingratos e traidores, não dele, mas da nação e suas mais profundas aspirações.

   Com o tempo, geralmente pouco tempo diga-se de passagem, ele deixa de se considerar o melhor gestor do mundo, para se considerar tutor de seus liderados. Aqui existe um perigo real, porque como tutor, sua flexível visão de interpretação das leis passa a ter nuances surreais, que levariam qualquer um à camisa de força. O problema é que o indivíduo em questão tem poder suficiente para se livrar disso.

   Alguns casos extremos fazem o então líder se considerar tutor não só do povo, mas de absolutamente tudo o que disser respeito ao país, se for o caso; isso pode acontecer e acontece em organizações menores, como empresas, agremiações, clubes, et cetera. Neste nível, ele passa a agir como se tudo lhe pertencesse, como se tudo o que existe no país fosse apenas emprestado aos seus cidadãos, ainda que eles tenham pagado caro pelo que conseguiram.

   Problema maior, porém, é que seus seguidores normalmente acreditam em sua liderança, em suas intenções, suas motivações e suas argumentações, por mais psicodélicas que estas se mostrem. Em geral esses seguidores se dividem em extremos. Um, a maioria, é composto pelos que se consideram e geralmente são muito ignorantes, mas apenas no sentido acadêmico, por isso se encantam com facilidade ao ouvirem os discursos de seu líder, quase sempre prolixo, longo, altamente retórico, repleto de citações e variando do tom mais piedoso ao mais exaltado. O clientelismo ganha nomes novos, sempre com intenções de exaltar a bondade de quem finalmente olhou por alguém que sempre foi preterido pelos outros líderes. Evocar o preconceito de classes mais abastadas é de uso diário, para lembrar que só o líder é amigo do povo, só ele e mais ninguém.

   O outro grupo, também numeroso, se considera altamente intelectualizado e detentor da verdade sobre a realidade mundial. Normalmente se considera o único grupo lúcido do mundo, e muito mais culto do que realmente é. Tem na ponta da língua uma série de passagens e frases de philosophos com os quais simpatizam, normalmente dando às suas conclusões uma interpretação dogmática, pouco o nada diferente de vertentes religiosas fundamentalistas. Assim como elas, se apegam muitas vezes ao pé da letra a todos os termos doutrinários de seus pensadores, rechaçando às vezes rispidamente qualquer acusação de contradição. Só confiam nas fontes oficiais de seus líderes, ainda que sejam governos falando de si mesmos, rejeitando informações de qualquer outra fonte, principalmente se julgam que tenha alguma simpatia com seus inimigos.

   Ridicularizar essas outras fontes, e principalmente quem lhes dá algum crédito, é de praxe para esses líderes. Usam e abusam de dados oficiais para desmentir qualquer notícia que lhes contrarie, sem poupar expedientes desde que eles lhes dêem os resultados que desejam, à melhor maneira do Príncipe de Maquiavel. Citam erros do passado, para tentar desacreditar uma notícia e fazê-la parecer falsa, ou mesmo acusar seus autores de conspiradores, mesmo que denúncias idênticas já tenham sido feitas a governos anteriores. Dizer a verdade para dar veracidade a uma mentira é tática recorrente.

   Não surtindo efeito a pilhéria com que alvejam seus opositores que, repito, para eles são INIMIGOS DECLARADOS e não simples portadores de outros pontos de vista, partem para a ofensiva. Em ambiente de redes sociais, comuns no meio de comunicação mais popular desta época, formam verdadeiras brigadas para tumultuar discussões alheias e dirigir ofensas e até ameaças directas, de modo que a conversa pública seja inviabilizada. Festejar publicamente o estupro de uma repórter do lado que considerem inimigo, ainda que se digam defensores dos direitos da mulher, não fere seus escrúpulos.

   Se lhes parece que estou falando apenas dos militantes de esquerda, alerto que os de direita não deixam por menos, ou ainda os que se dizem de centro. Mesmo entre os que se identificam ideologicamente, existem divergências graves, que só são ignoradas durante alguma ação coletiva. O líder sabe dessa desunião, sabe e se aproveita dela, se apresentando e vendendo como amalgama para os tijolos soltos, que se deixam placidamente assentar aos caprichos manipulativos desse líder. Como tijolos, formam paredes de proteção ao redor desse líder.

   A manipulação da opinião pública, aliás, é um dos subterfúgios mais comuns. A tática de estabelecer uma guerra de informações, laudos, estatísticas, pesquisas e notícias é das mais comuns. A população fica confusa e praticamente só os radicais, pró e contra, ficam seguros do que lhes é dito, aceitando ou rejeitando imediatamente, quase sempre sem contestar. Nesse tipo de regime, a classe média é sempre inimiga, seja o regime de direita, de esquerda ou o que for. O grupo que ascende é sempre alvo dos ataques, mas sabendo do canal econômico e tributário que ele é, o líder quase nunca leva à cabo o ódio que incita. É claro que poucos de seus partidários admitem que odeiam, evocam um dos muitos discursos retóricos para dar outros nomes ao que fazem, mas uma análise psicoilógica mais consistente detecta facilmente o rancor.

   Mantendo o grupo global em constante desentendimento, e até em animosidade mútua, o líder se sente à vontade para usufruir como bem entende do erário. Aqui temos o caso extremo desse tipo de líder, porque neste momento os riscos de ele se considerar O ESTADO são grandes, e geralmente se concretizam. Quem falar mal dele passa a ser visto como detrator da nação, pelos seus partidários, apontar suas falhas passa a ser considerado uma ofensa ao próprio povo, que então se torna um escudo humano ideológico para ele. A nação se torna o seu corpo e todos os que estão nela as suas células. Embora o caráter não esteja em pauta, normalmente ninguém com a índole e a psique em boas condições se rende a tamanhos caprichos. Embora o caráter não possa ser justificado para isso, o líder enlouquece, passa a acreditar piamente no que prega e se considera o salvador de sua nação.

   A situação interna quase sempre se agrava e deteriora, para o quê as posições precisam ser consolidadas, a lealdade ao líder sempre reiterada, o inimigo eleito sempre mais atacado e novos inimigos sempre cultivados. A censura é a arma mais poderosa dele, ainda que receba outros nomes, mesmo que a prática seja idêntica a de ditaduras que porventura tenha combatido, se é que realmente combateu. A guerra de informações, a luta de palavra contra palavra, a negação veemente de contactações feitas in loco, ainda mais em países de grandes dimensões, a instauração de uma guerra fria civil, entre outros artifícios, mantém o líder no poder por mais tempo. A intenção quase sempre é de perpetuação e herança, como em uma monarquia, mas sempre negando qualquer similaridade com a realeza, sempre usando de discursos prolixos e retóricos para isso. A militância é sempre chamada para tanto, muitas vezes ofendendo a inteligência e a integridade de caráter e moral de quem discordar das suas argumentações.

   Os investimentos em propagandas passam a ser vultuosos, muitas vezes elas são inseridas em comunicados oficiais, para não parecerem tão evidentes, mas estão lá. Pintar prédios públicos com cores ou citações do líder, é uma das opções preferidas. Qualquer manifestação em contrário é imediatamente rechaçada pelos simpatizantes, que sempre têm, novamente, uma militância disposta a tudo para não permitir que mazelas de governos anteriores voltem a contecer, mesmo que já estejam acontecendo com outros nomes e sob outros discursos.

   Em caso de protestos em contrário, a força sempre será usada. Não raro, infiltrações de simpatizantes como tática de contra-insurgência são providenciadas. Como forma de deslegitimar e difamar uma manifestação, ainda que tenha começado de forma pacífica, e justificar o uso da força policial de repressão. Sim, decerto que a vida de um manifestante vale mais do que um carro, mas eles usam isso para justificar praticamente qualquer acto de violência e, sempre, em qualquer circunstância, a pele do simpatizante do líder vale mais do que a do opositor. E a ala radical da oposição sempre oferece combustível para a argumentação pró líder, sem perceberem ambos os manifestantes, que entraram no xadrez da situação como reles peões, cujas vidas não valem absolutamente nada, após terem cumprido com seus propósitos.

   A imprensa, novamente, é sempre um alvo preferencial, tanto dos discursos quanto da violência física. A censura indeclarada em seus modos mais violentos é aplicada sem escrúpulos, e as vítimas são invariavelmente colocadas no papel de vilões mal intencionados. Aqui os simpatizantes do líder repetem discursos que até então abominavam, e atacam com fervor qualquer um que aponte sua contradição. Fazer de palanque os túmulos passa a ser aceitável, mesmo que a prática tenha sido condenada em governos anteriores.

   Paralelo a isso, os problemas cotidianos da vida coletiva são deixados soltos, para que se agravem de modo tal, que o cidadão não tenha mais como participar de ações opositoras, pois está ocupado demais tentando voltar vivo para casa, ou sobreviver à peregrinação por socorro, como em uma busca por leitos públicos de hospitais, por exemplo. Uma mãe dificilmente deixará de socorrer o filho enfermo para se meter em uma multidão que a qualquer momento pode ser alvo, tanto de manifestantes infiltrados quanto da tropa de choque; ambos a serviço da mesma pessoa, mesmo que não saibam... E se souberem, negam até a morte.

   Uma situação desse tipo não dura para sempre, mas causa estragos gigantescos e infelizmente deixa sementes que brotam e crescem rapidamente, às custas de sugar e sufocar outras plantas, na primeira condição favorável que surgir. Nossa invigilância e nosso orgulho, como a certeza de que sabemos o que é melhor e o que é pior para os outros, nossas convicções arraigadas, sempre fornecem essa condição.

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