27/03/2014

Memórias de um agente




    Eu já não era mais um jovem, mas ainda estava longe da velhice. Corria o ano de 1951, quando já tínhamos eliminado a última semente escrota do nazismo, embora soubéssemos  que algum dia, mais idiotas se apegariam às suas cinzas para compensar seus vazios. Well, isso já não era problema meu, minha parte estava feita. A minha e a de cada membro da legião.

   Identidades novas estavam sendo providenciadas, vidas novas estavam sendo forjadas, os fios da teia social da qual passaríamos a pertencer, estavam sendo cuidadosamente atados pelos agentes competentes; aliás, pareciam ser os únicos que eu podia chamar assim, os outros estavam tão neuróticos que mal conseguiam raciocinar.

   New York sempre foi uma cidade agressiva, mas não era difícil aprender a lidar com essa agressividade. Apesar de tudo, e das vezes em que ficamos cara a cara com a dona Morte, fomos felizes naquele pardieiro. Era esse o problema, nós fomos muito felizes, apesar de tudo. Não precisávamos de motivos para sermos, éramos e ponto final! Apesar de dominadora e tudo mais, New York foi uma mãe carinhosa, em meio aos rigores a que nos submeteu, rigores que nos tornaram fortes o suficiente para sairmos vivos de nossas missões.

   Mas tinha acabado. Se continuássemos por lá, as coisas voltariam a se complicar e os civis inocentes, por mais sacanas que fossem, acabariam pagando por um pato que não comeram. Washington já dera o sinal verde, o departamento de medicina legal já tinha providenciado os cadáveres de indigentes, e as carpideiras profissionais da CIA estavam prontas para dar autenticidade ao falso velório. Pelo menos aqueles pobres diabos teriam um enterro digno, em vez de serem enterrados como adubo.

   Tudo estava pronto, sairíamos com a roupa do corpo, absolutamente nada que já tivéssemos conseguido poderia nos acompanhar. Nada mesmo! Nem nossos bichos, nem meu suado Mercury Sport Sedan ainda cheirando a novo, nem nossos amores, tampouco as famílias. Praticamente só Patrícia pôde se despedir do seu, bônus de agente que se enamorava com agentes. Mas foi uma despedida triste, muito triste! Ele sabia que ela permaneceria viva, mas nunca mais saberia de seu paradeiro. Na verdade nem nós sabíamos para onde iríamos. Só eu sabia que iríamos para o Brasil, mas nossos destinos precisos seriam definidos na hora, por sorteio.

   Minha especialidade era muito valiosa e seria utilizada para o fim. Lavagem e contra-lavagem cerebral. Não, eu não apaguei as memórias de ninguém, só utilizei minhas técnicas para que todos tivessem na ponta da língua, e até por sensações induzidas, seus novos históricos de vida. Cada um deveria merecer o Oscar por cada dia de sua nova vida.

   Ah, como fomos felizes naquele lugar! Embora a necessidade de o inimigo ter certeza de que estávamos mortos e carbonizados fosse imperiosa, nem o Doctor Icebox ficou indiferente. O diabo é que o agente Carl, hoje Renato, reclamou de não poder receber a grana da aposta. Dr. Phineas Peebles estava lá, na nossa frente, lacrimejando, para o assombro geral da CIA, mas nem o gosto de ver os cem dólares da aposta nosso companheiro poderia ter. A agente Berta, hoje Eddie, tentou consolá-lo, mas só conseguiu rir da cara dele até a hora de tudo começar.

   Era inverno, tudo conspirava para dar certo. E deu! Mais até do que esperávamos. Um agente inimigo tinha entrado no nosso antigo lar, não sabemos para quê, mas sabíamos que não era para nos pedir desculpas por quase ter nos matado uma dúzia de vezes. Então ninguém ficou triste em antecipar em alguns minutos a explosão, o prédio já estava com vários vazamentos de gás mesmo. Foi com prazer que causamos o curto-circuito.

   Vida de agente secreto é triste. James Bond chega a ser uma ofensa às nossas cicatrizes. De longe, com potentes binóculos, vimos tudo o que conseguimos, e que eu, pelo menos, tínhamos acumulado para uma velhice tranqüila, estava ardendo em chamas, para logo ser sepultado nos escombros da alvenaria fragilizada. Patrícia chorou! Como chorou! O apartamento amplo e arejado tinha sido destinado ao casamento com o agente Phillips. Ele faleceu um ano depois, de câncer decorrente de exposição excessiva aos testes nucleares. Foi, assim, quem menos sofreu.

   Sim, agente secreto tem sentimentos. Muitas vezes nós precisamos ser sacanas, temos que ferrar irreversivelmente um cretino que não dá a mínima para a vida de um compatriota nosso, às vezes nem às dos próprios. Não pensem que isso acontece porque gostamos, acontece porque vocês se sentem confortáveis em sua alienação e não tomam conta da parte que ljhes toca da administração mundial. Eu queria ser arquiteto, mas tive que me tornar assassino do governo; eu e meus colegas éramos os menos ruins, acreditem, havia verdadeiros psicopatas na lista de candidatos.

   Foi um ano de treinamento intensivo, com técnicas absolutamente reprováveis, mas absolutamente necessárias de lavagem e autolavagem cerebral, com os melindres de se evitar suas conseqüências danosas. Se funcionou? Sim, funcionou muito bem, bem até demais. Felizmente o nosso sacrifício acabou demonstrando que o cérebro humano tem uma capacidade de aprendizado e estocagem muito maior do que se imaginava, tanto que as pesquisas duram até hoje, e vocês se beneficiaram delas, ainda que não saibam. Infelizmente a memória dupla nos tornou saudosistas inveterados, com todo o potencial de ampliação do sofrimento que vocês nem imaginam. Se dez anos de memória já lhes traz saudades, imaginem lembrar com nitidez do que me aconteceu em quinze de Dezembro de 1948, quando minha primeira filha nasceu!

   Sim, eu tinha filhos. Três na verdade. Duas meninas brancas e um negro, adoptivo. Barbara deu de ombros para os comentários e insistiu na adoção. Foram poucos anos, infelizmente. Minha vontade de matar o cretino do Major Lawrence quase superou meu amor à pátria... Ele se casou com minha "viúva"... Safado! Eu era o único casado, fui o que mais perdeu com isso. E ELE SABIA DE TUDO, FAZIA PARTE DA OPERAÇÃO! SAFAAAAAADOOOOOOO!

   Outra técnica condenável, que nos causou dores terríveis por vários anos, foi um teste genético que deu mais veracidade à farsa. Produziu uma apoptose controlada, nos fez regredir alguns anos, biologicamente, estabilizando nossos corpos até meados dos anos 1980, quando voltamos a envelhecer quase normalmente. Quase porque o agente Tracy, que não sei mais por onde anda, desenvolveu uma bizarra menstruação masculina. Em vez de esperma, passou a produzir óvulos... Por isso a técnica foi definitivamente abandonada. Dizem que foi totalmente transformado, que seus cromossomos Y abriram as perninhas e, bem, tem muita lorota no meio da espionagem, não dá para acreditar em tudo.

   Nem todos os presidentes americanos tiveram acesso a esta informação. Eu só posso contar agora, porque o perigo foi definitivamente debelado, após seis tristes décadas. Também porque ninguém vai acreditar! Vocês acreditariam se eu dissesse que o Capitão América existiu de verdade? Não, né! Pois existiu e eu lutei ao lado dele! A maioria dos filmes realmente bons, foi inspirada em memórias de agentes que, ao contrários de nós, não podiam se lembrar com clareza de suas missões, então sofreram lavagens mais profundas. Star Trek, Star Wars, Matrix, Indiana Jones, A Vida é Bela, enfim, muitos dos clássicos do cinema e da televisão de hoje saíram de adaptações de memórias ocultas de agentes secretos.

   Não, o seu mundo não é uma mentira, só é muito mais colorido e rico do que vocês pensam. Muito mais do que suas mídias medíocres os fazem acreditar. Muitas outras operações virão à tona, não totalmente, por enquanto, mas virão, seja na forma de filmes, de livros, ou o que for. Já é seguro tirar alguns esqueletos do armário; e a América tem muitos!

   Hoje estou voltando para lá. Não para New York, as boas lembranças me fariam cometer suicídio. Vou para Michigan, ajudar a reconstruir Detroit. Uma terceira identidade já foi providenciada e, lamento, desta vez vocês não poderão saber quem eu serei, não pelos próximos trinta anos, pelo menos. Os outros ficarão, estão bem arranjados por aqui, eu é que não me adaptei direito, apesar de todos os meus esforços.

   Good bye, Brazil.

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