30/01/2014

Internet - Um drama adolescente

Praia do Arpoador 1966-67

Sempre foi um garoto normal, dentro do que se pode considerar normal em um adolescente, é claro. Fazia homenagens solitárias no banheiro, nem sempre se lembrando de limpar a bagunça, sempre dando aos “amigos” as satisfações de suas aventuras sexuais imaginárias. Os pais tinham vontade de torcer-lhe o pescoço pelo menos uma vez ao dia, como normalmente acontece nesta fase crítica da vida humana.

Implicava com as amigas da irmã, embora xavecando quando ela não estava por perto, implicava com seus namoricos, com as primas, com qualquer coisa que respirasse, enfim. Era um adolescente, caramba!

Certa feita, pelas ondas magnéticas da internet, encontrou um site de um colégio antigo e conceituado; até porque os de hoje só se interessam pelo vestibular, fazem os alunos memorizarem horrores que esquecerão assim que saírem da sala de provas. Lhe chamou a atenção a página de álbuns. Começou a ver só para poder implicar. Um narigudo que sustentaria o tráfico sozinho se começasse a cheirar, um balofo que faria sucesso no cinema como dublê de baleia, uma garota que rendeu uma homenagem solitária, outra que só se casaria com um cego, et cétera.

Começou a ver photos mais antigas e começou a implicar com elas também. Usando prints, já que o site não permitia salvar suas imagens, começou a postar algumas no facebook, com comentários maldosos sobre a moda de eras passadas. Os anos setenta e oitenta arrancaram risadas e piadas até perversas de seus contatos, em especial o comprimento de saias e shorts. Nenhum deles imaginou que poderia estar xingando seus próprios pais, em especial suas mães, a quem exigiam respeito sacrossanto e reverência antes de serem citadas por terceiros.

Retroagindo, começou a ver com alguma simpatia os anos sessenta, ainda que as saias fossem ainda mais curtas. Mais homenagens solitárias, mas tendo o cuidado de não deixar meleca espalhada no banheiro. O acervo do colégio era bem vasto, ele se divertiu muito vasculhando tudo, e salvando com um print screen o que lhe interessava. Em dado momento, chegando à segunda metade dos anos cinqüenta, começou a se encantar com uma aluna da época, de volumosos cabelos curtos. Sorrisinho singelo cerrando os olhos, franja bem penteada, cinturinha marcada e jeitinho maroto. Na época, deveria ser um pouco mais velha do que ele hoje. Vê os nomes no rodapé da photographia, identifica o dela e passa a buscar por mais. O registro mais antigo dela é de 1948, ainda menina.

Ele comete o erro de se apaixonar perdidamente por alguém que pode já estar morta. Já está meio tarde e amanhã precisa acordar cedo para ir ao colégio, mas salva o site nos seus favoritos, para continuar amanhã, assim que voltar das aulas. Sonha com ela durante a noite inteira, acordando a casa no meio da madrugada com os pulos na cama. Sua irmã grita de nojo ao ver o cobertor melecado. Chama-o de moleque pervertido e o proíbe de chegar perto de suas amigas, diz que vai avisar aos irmãos delas e tudo mais. A mãe dele é mais amena, embora lhe dê uma reprimenda por ter interrompido o sono de gente que dá duro o dia todo. O pai fica calado, na adolescência apanhou da mãe pelo mesmo motivo. Ele terá que lavar a roupa de cama, para aprender.

Nos dias seguintes ele toma mais cuidado, alivia as tensões no banho imediatamente anterior ao sono. Frio, sempre que o clima permite. Com as tensões desfeitas, os sonhos são menos eróticos, mas o travesseiro continua amanhecendo ensopado de baba, de tanto que troca beijos de língua com sua namorada onírica.

O caso não prejudica sua vida social nem a escolar, menos mal. Ele não quer ser punido com o cancelamento de sua internet, sem a qual ficaria sem poder conhecer melhor sua paixão virtual, talvez até póstuma, ele está se preparando psicologicamente para isso. Quase um ano depois do “amor à primeira vista”, ele consegue quebrar o sistema de segurança e ter acesso livre a todas as dependências do site. Entra em arquivos reservados, encontrando photographias de acesso restrito, quando encontra sua paixão em trajes de banho. Fica maluco ao vê-la de biquini, mesmo os da época serem enormes para os padrões vigentes. Salva tudo, não deixa um bit sem ser vasculhado. Fica louco de tesão mesmo ao vê-la em trajes de baliza, de quando liderava os desfiles do colégio com aquela minissaia curtíssima. Começa a achar que se houvesse nternet nos anos sessenta, gostaria de ter vivido neles.

Um dia a irmã o flagra beijando avidamente o monitor. Ela imagina que se aquilo fosse uma garota, seria uma endoscopia de língua, não um beijo. Quando ele sai, ela entra rapidamente e vê o histórico, encontra centenas de buscas pelos anos de 1940 aos 1960. Começa a ver alguma ternura nisso, a ter um tênue e frágil fio de esperança no irmão. Acha tudo aquilo muito fofo para ser coisa de um fedelho pervertido. Fica de butuca ligada, saindo imediatamente quando o vê pela janela, chegando do banco. Vai à mãe, contar a coisa mais fofa que já viu. A mulher estranha, pede para ver assim que ele for para o colégio, na segunda-feira. Pois na segunda-feira lá estão as duas...

  • Gente!!!
  • Não é fofo, mãe?
  • É o colégio da sua avó! Mamãe estudou aí, quando tinha a sua idade!

Vasculham os arquivos, já com o sistema de segurança domado pelo garoto. Photos do pátio, da sala de aula, dos desfiles, dos carnavais, do clube, da praia e até algumas particulares, cedidas ao colégio. A garota reconhece que as moças cheinhas de então, eram muito atraentes, apesar de hoje se apregoar o contrário, conclusão que aos poucos desfaz os sorrisos das duas...

  • Não, não pode ser isso!
  • Será que ele tá esquisito assim por causa dessas garotas??
  • Pior! Será que ele está esquisito assim por causa da minha mãe??
  • Fodeu... A gente conta pra ele?
  • … Primeiro pro seu pai... Depois pra mamãe, pra prevenir... Bem, sou eu...

O homem cai na cadeira da secretária. Pragueja, diz que vai torcer o pescoço do moleque, mas depois se acalma. Embora sem tanta gravidade, ele já foi apaixonado por Greta Garbo, a ponto de não cogitar ter outra mulher, até conhecer a sua. Nisso reflete e releva, ele é só um garoto, um adolescente boboca como qualquer outro, afinal ser boboca é quase um sinônimo da adolescência. Apressa as remessas, antecipa algumas entregas e dirige seu Atron 1635 verde e preto para casa. Pára o caminhão do lado de fora mesmo e vai ver. Odeia, simplesmente odeia figadalmente reconhecer, mas sua sogra já foi um tremendo avião. Quem o conhece sabe o quanto lhe sai caro ter que admitir isso, especialmente diante do sorriso de triunfo da esposa. Mas decide que o moleque vai ter que saber e já deixa uma consulta psiquiátrica agendada. Toca o telephone e quem é? Sim,. A sogra. A mesma de quem ele disse maravilhas há alguns minutos, fazendo-o pensar “Vou esfolar esse moleque!”. Ele não sabe o que a dita cuja está falando à filha, mas ela não fez questão de moderar a voz ao reproduzir seus elogios; quase pode ver o sorriso de triunfo da jarraca, que decide passar algum tempo com eles, até para ver se pode ajudar com o neto.

No sábado, trazendo photographias de sua juventude, ela está lá. O homem começa a se odiar, porque já não consegue mais ver a broaca horrorosa e disforme que conseguia ver nela, simplesmente porque ela é uma idosa bonita e charmosa, tem que admitir mesmo com o estômago doendo. O garoto faz festa na volta do colégio, vendo a avó, mas dura pouco...

  • Você sabe quem é essa moça?
  • Conhece ela, vó? Ela tá viva?
  • Olha pra ela e depois pra mim.

Ele o faz. O faz dezenas de vezes, com todas as photographias, se enchendo aos poucos de desespero. Dá um berro e sai correndo descontrolado. O Mercedes-Benz do pai lhe tira a visão e é colhido por um Scania R620, felizmente em baixa velocidade, mas duas dezenas de toneladas não precisam de muita velocidade para fazer muito estrago. Ele é jogado dez metros para frente e rola até bater em um Fusca verde 1967.

Acorda quase um mês depois, vendo a avó ao seu lado. Não houve danos irreversíveis, mas a quebra dos ossos da face obrigaram a várias cirurgias delicadas de reconstrução, que o deixaram um bocado diferente, a ponto de os colegas talvez não reconhecerem suas novas feições. Antes de chamar a filha, ela segura a mão do rapazote, que chora feito um bebê. Como todo adolescente foi radical, tinha depositado todos os seus sonhos em uma época que já não existia. Chorando pede desculpas à avó, que o cala e se limita a abraçá-lo, até o choro cessar, então liga para a filha.

Volta para casa no mesmo dia, mas não a mesma pessoa. A psicoterapia o ajuda a digerir a quase tragédia que aconteceu, o faz perceber que a responsabilidade foi da visão pubiana que ele tem das relações pessoais, que o impediram de ver as coisas como elas realmente são. Os colegas realmente não o reconheceram, mas não foi só pelo novo rosto, ele já não era o mesmo. Via agora as pessoas, especialmente as mulheres, com um respeito cavalheiresco, mesmo que aos olhos do senso comum elas não se dessem a esse respeito. Bem, o respeito era dele, ele o dava a quem quisesse. No final das contas, e de um ano inteiro trabalhando o trauma, ele saiu uma pessoa muito melhor do que a que foi atropelada. Virou vintagista, aceitou uma vaga de ajudante de motorista, trabalhando no mesmo caminhão que o pai, já ciente do quanto desperdiçava sua vida nas esbórnias “secretas” com colegas, que todo mundo sabia onde e quando aconteciam. Não gostou de ter sido atropelado e quase feito em pedaços por aquele mostro mecânico, até porque poderia ter morrido, porque aquele moleque insuportável morreu. E já foi tarde.

Ainda acha que se houvesse internet nos anos sessenta, adoraria ter vivido neles.

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