23/09/2011

De cousas pelas quais passei.


Estive na noite fria e tempestuosa, solitário em caminho ermo. A água da chuva se misturava com minhas lágrimas e meus prantos eram abafados pelo estrondo de sua queda.

Por um estranho motivo a quadra que atravessava estava muito maior, e os tênis encharcados tolhiam minha agilidade. Meus passos eram miúdos, tão ágeis quanto podia, mas podia bem pouco.

Estava com frio, cansado e a caminhada parecia não terminar nunca. Não conseguia contar os passos, parecia ter andado um quilômetro e a roupa ensopada parecia pesar mais do que deveria.

Estava sozinho com meus próprios monstros, meus medos, meus traumas e minhas fraquezas. O céu em nuvens pesadas tinha engolido qualquer ponto de referência.

Me arrastava quase congelado, com a mochila nas costas, ensopada. Por um milagre os cadernos não se desmancharam. Mas eu sim. Eu já estava fragilizado, o desenrolar dos trâmites só fez tudo desabar de vez.

Com muita dor as feridas estavam sendo lavadas, como se a chuva fosse de salmoura. O re-parto que se dava me sufocava e eu novamente não conseguia dar o choro que os médicos esperavam, só gritava para dentro.

Ninguém ao meu lado. Onde eu estava é o de menos. Estava só. Não que sempre tivesse realmente acompanhado, mas a solidão de então era uma companhia ameaçadora. Ela sabia de tudo, inclusive o que eu não sabia de mim mesmo.

As poucas pessoas que estavam ao alcance da visão, tinham sumido. As sombras em alto contraste das árvores estavam ainda mais escuras, como se tivessem derramado nanquim.

Dos anos que vivera até então, vi o filme completo, como se anunciasse o óbito iminente, que não veio, é claro. Não me lembro do que vi, me lembro de não ter gostado. Mas tudo se desvaneceria aos poucos, com o passar dos dias.

Cada dor, cada pranto, cada palavra calada na marra. Tudo estava lá. Não sei quanto tempo durou a sessão de tortura memorial, mas apelando à relatividade, durou uma vida inteira.

Esse inferno não durou mais do que uns poucos minutos, mas para alguém tão jovem era uma eternidade. Não havia capetinhas me cutucando com seus tridentes, surrupiados pela igreja de Posseidon para demonizar os deuses gregos. De resto, a agonia, o sofrimento de que não podia me esquivar, a certeza do desamparo, tudo era o retrato cênico de um inferno. Aquela esquina não chegava nunca.

Com o passar dos anos o episódio, que nunca se repetiu, foi tornando-se uma exceção à regra de minha péssima memória... Péssima quando não lhe convém, eu pago o preço de seus caprichos. A cena ainda é nítida. As sensações foram superadas com razoável eficácia, mas as lições deixadas ainda doem.

De vez em quando o inferno faz lembrar de sua existência, mas também que sobrevivi a ele. A depressão sazonal resultante é uma seqüela. Minha loucura está sob controle, ao contrário de quem se esforça em parecer normal, ou em contrariar as regras de normalidade.

O ruim não é tanto isso, é vir gente (muita, aliás) achando que: sabe o que é melhor para mim, sabe da minha vida mais do que eu, sabe o que estou pensando, sabe o que quero, sabe que motivos tenho para fazer ou não algo, conhece o caminho que trilho, estou revoltado contra o sistema ou qualquer asneira que valha, não conheço a vida de verdade, enfim, gente se perdendo de tanto achar.

Depois de tudo o que passei, ainda haver gente querendo me dar lições de vida, como se a conhecesse toda mais do que eu, é patético. Enfrentei o que se escondia nas profundezas abissais de minha alma, cousas de dar medo à maioria absoluta dos adultos, como minha potencialidade para ser cruel; no fim acabei me tornando apenas um xarope viciado em rigor disciplinar e boa conduta, mas só porque enfrentei o carrasco que tenho em mim. Mas hipócrita, isto eu nunca fui. Fazer o que não presta não constituía um divertimento aos meus olhos já envelhecidos.

O mais ridículo: Acreditar que não me corromper (apesar das portas escancaradas) é prova de ingenuidade, me dói o fígado. Não é à toa que me afastei e continuo me afastando de muitos, que no final das contas não fazem a menor falta.

7 comentários:

Lilly Rose disse...

Boa noite querido Nanael,

Quando enfrentamos nossos demônios interiores, frente à nossas falhas e virtudes, tudo ao mesmo tempo (como num carrossel a girar),
é isso que vemos e sentimos.

Como ti, passei por algo muito similar. E como ti continuo aqui.

Qto aos Reis e Rainhas do "Achismo", que se percam.... Nada acrescentarão a nossas vidas.

Que ocupem-se de suas próprias vidas.

Que na maioria das vezes, não dão conta em administrar. Então preferem vir dar "pitaco" no quintal alheio...


Tenhas um FDS Abençaodo amigo, e lembras: tens companheiros(as) de jornada, que muito te gostam !!

Aromas de Rosas...

Lilly Rose

Nanael Soubaim disse...

Não falei metade da introdução, nem preciso, o restante é quase uma repetiola.

Sabadeie e aproveite.

Lilly Rose disse...

Bom dia amigo querido,

Tu também!! Tenhas um sábado e domingo restauradores !!

Com todo o Carinho,

Lilly Rose

Patrícia Balan disse...

Você acredita que os sinais de Síndrome de Pânico só ficaram visíveis DEPOIS que eu comecei a medicação? Nem isso dá para a gente provar que sente. O que não faltou foi irmã e amiga para acreditar em mim sem diagnóstico nenhum. E ainda mais: sem nem acreditar em mim - bastava me ver sofrendo por algo que poderia ser verdade ou não. Minha irmã Jô cansou de andar no condomínio de madrugada até meu horror passar. Ela nem perguntou de onde veio ou para onde foi. Tem gente legal demais no mundo para a gente perder tempo com quem não presta - e ainda por cima deixar um animal desse falar. Deus inventou o "vai catar coquinho" por um motivo. Depois de Nanael, só o que é mais doce que mel. Tenho dito!

Vy disse...

Esses muitos são tão poucos...
O inferno às vezes parece infinito, dura muito mais do que algo bom que parece durar alguns minutos apenas.
E o pior, a minha esquina também não chega nunca...
Beijo
Vy

Nanael Soubaim disse...

A esquina chega. A angústia é que dilata o tempo.

Vy disse...

Tem e-mail pra você anjo!