Às vezes fico sem gancho para tratar de um assunto, quando isso acontece recorro a métodos similares às parábolas, então usarei como pano de fundo a última onda imigratória coreana ao Brasil.
Yun organiza metodicamente sua mesa para o começo da aula. Ela ajeita os cabelos bem penteados enquanto seu colega tenta organizar seu material, quer dizer, tenta encontrar alguma coisa naquela bagunça...
- Marcelo, o que está procurando?
- O lápis 6B.
- É este na sua orelha?
- Heim?
Não é a primeira vez que ela lhe salva de um apuro, tem sido inútil ensiná-lo a organizar sua maleta. Aprendeu português razoavelmente bem em pouco tempo, com sua disciplina e seu interesse em construir uma vida nova no Brasil. A professora percebeu o interesse e sempre tem uns minutos de conversa com ela, após a aula, como agora...
- Tem tempo pra mais uma conversa?
- Tenho. A professora é muito interessada nas minhas histórias.
- Você fala coreano bem como fala português?
- Não compreendi a pergunta. Eu sou adulta, tenho o dever de falar, ler e escrever correctamente.
- É que muita gente aprende outros idiomas muito melhor do que o nativo.
Yun puxa pela memória uma ou duas reportagens de brasileiros que aprendem a contento línguas de países onde vão trabalhar, mas esculhambam sem dó a língua-mãe. lembra-se também de a jovem professora reclamar do sistema educacional do Brasil...
- Sim, agora compreendo. Na Coréia do Sul existe uma espécie de acordo informal do cidadão com o país. Há diferenças de sotaques e gírias de região para região, mas existe um idioma que une a nação. Se não for aprendido e praticado a contento, corre-se o risco de pessoas dos extremos da nação não se entenderem.
- Li muito a respeito do investimento de vocês em educação de base. No começo deve ter sido difícil!
- O começo é sempre difícil. Gasta-se mais energia para quebrar a inércia do que para manter o movimento. Éramos um país inexpressivo, quase arruinado pela guerra e pela divisão. Tínhamos que optar entre esperar pela ajuda financeira para começar a andar, ou nos preparar para quando ela chegasse, que é bem mais cansativo.
- Vocês não deram colher de chá para quem estava atrasado?
- É costume tomar chá, no oriente, mas não sei como isto pode ajudar no aprendizado.
A brasileira ri, se desculpa e explica o que significa a expressão, então a aluna, seis anos mais velha, também ri e explica em tom mais severo...
- Diga-me uma coisa, quando você quer fortalecer seus músculos, o que você faz?
- Malho. Quer dizer, me exercito.
- Se tem dificuldade com os pesos, você usa um mais leve, certo? Você fica eternamente com esses mais leves ou passa para os pesados assim que puder?
- Passo para os pesados assim que meu treinador pessoal ver que tenho condições, senão não ganho massa muscular nunca!
- Com o cérebro é a mesma coisa. É bom usar de técnicas para facilitar a compreensão de um tópico, quando ele é compreendido, o nível de dificuldades deve voltar a crescer, ou a mente fica preguiçosa. A qualidade da formação de um aluno não está no diploma que ele porta, está no conteúdo que traz e na sua capacidade em lidar com ele. Há vinte anos, ninguém compraria um carro coreano, e com toda razão! Hoje fabricamos até a tela sensível ao toque que ele leva no painel.
- Tem gente que defende a progressão continuada a todo custo, para efeito de inclusão...
- Inclusão onde? Se você recebe tudo de graça, é como se seu treinador levantasse os pesos no seu lugar. Ninguém fica forte vendo os outros se exercitarem. Ninguém fica forte apenas por entrar e sair do prédio de uma academia, ainda que memorize todos os procedimentos, nomes e técnicas. Você pode se enganar e até produzir suor, a mente é capaz disso, mas na hora de empurrar os móveis, levar sacolas de compras, subir escadas, correr, carregar uma criança, seu corpo vai reclamar os exercícios mal feitos ou não feitos. Eu estou a par do modelo de educação que vocês têm e vou alertar-lhe: Você pode se enganar na hora de receber um diploma e ostentar um título, mas não pode enganar uma máquina, seu cliente, seu chefe. Se você chegar a uma empresa portando um diploma de engenharia, mas só tiver nível para ser varredor, varredor é o emprego que vão lhe oferecer. Como vocês dizem, papel aceita qualquer coisa, você desenha e escreve o que quiser, mas na hora de talhar a pedra, ela vai lhe exigir o conhecimento e o talento de um escultor. Quanto mais dura e bonita for a pedra, mais conhecimento, talento e experiência o escultor precisará ter.
- Aqui a gente pena pra convencer um aluno a esculpir no gesso, imagine uma pedra! O que você acha dos sistemas de cotas?
- Se essas cotas fossem para capacitar o aluno a competir em pé de igualdade, seria perfeito. Levaria mais tempo, custaria mais recursos, mas os efeitos seriam perenes. Eu não gosto de interferir em assuntos alheios.
- Você mora no Brasil, Yun, os assuntos são seus também. Ou pretende voltar à Seul?
- Não. Só de férias. eu aceitei esta missão e a levarei até o fim.
- "Missão"...
- Eu me comprometi a fazer tudo o que estiver ao meu alcance para unir as duas culturas, na medida do possível, e sei que isto é trabalho para uma vida inteira. Bem, aqui meu grupo e eu estamos representando as duas Coréias, é por nós que vocês terão sua impressão de nosso país, então temos que fazer as coisas certas.
- Vocês está alimentando o estereótipo das mulheres-dragão. Está falando como uma embaixadora! Relaxa, aqui as coisas são mais suaves!
- Eu sei - sorri. Estou tentando relaxar, como vocês falam, mas há coisas as quais não posso negligenciar. Eu ensino português ao meu grupo, e também sou professora de línguas orientais. Tenho uma responsabilidade muito grande, não posso falar "nóis vai" na frente deles. É um modo relaxado de se falar, mais confortável, mas para quem está aprendendo não é bom.
- Erros de pronúncia são normais em qualquer idioma.
- Sim, são. Mas é necessário deixar claro que um erro é um deslize, ou uma momentânea dificuldade em executar a tarefa a contento. Imagine duas cidades fictícias e vizinhas, dentro de um mesmo país. Há um idioma que permite que seus cidadãos se comuniquem, ainda que haja diferenças de denominações por conta das particularidades de cada população, a língua oficial permite que seus cidadãos possam ir de uma cidade para a outra sem dificuldades de comunicação. Está compreendendo?
- Sim, estou.
- Pois bem. A partir do momento em que for tolerado que os habitantes de uma cidade modifiquem as palavras ao seu bel prazer, a comunicação passa a ser dificultada. A outra cidade não tem obrigação de aprender palavras que não estejam nas regras claras de sua gramática, e eu sei que o português tem regras bastante detalhadas.
- Detalhadas demais para o gosto de muita gente.
- Sim, o coreano também, mas isto nunca foi entrave para o aprendizado das crianças. De volta ao exemplo, os habitantes da cidade terão dificuldades em se comunicar com os de outras. Dentro de uma cidade há grupos e estes também podem se sentir no direito de ignorar até mesmo as normas relaxadas adoptadas pela comunidade em que vivem. É louvável compreender as dificuldades de uma pessoa, mas quem quer ajudar deve ajudá-la a superar suas limitações, não rebaixar o nível do aprendizado e fazer de conta que isto não a influenciará negativamente. Ela sempre dependerá de facilitadores para subsistir.
- Vá dizer isto aos demagogos de Brasília. Vocês gostam muito de cantar, não é?
- Não fabricamos Elvis em série, mas gostamos muito de cantar. As línguas do extremo oriente são muito musicais, o tom modifica o significado da palavra, então precisamos estar atentos à musicalidade da língua. Aqui também há um pouco disso, o tom de voz pode tornar um "seu idiota" uma ofensa grave ou uma reprimenda carinhosa. Vocês deveriam voltar a lecionar música nas escolas primárias, aprender música facilita com a matemática. Às vezes é chato, cansa, mas todo exercício bem feito cansa. Depois dele, toma-se uma ducha, um lanche e faz-se um repouso, não é preciso haver tirania no ensino para que ele seja eficaz.
- Não basta ser eficiente, tem que ser eficaz, resolver os problemas do aluno.
- Não. Deve-se tornar o aluno capaz de resolver seus próprios problemas, Eddie.
- Pior!... E vocês estão deitando e rolando com a nossa deficiência... Cara, quê que eu tô fazendo no seu carro???
- Ah, não tem problema. Você não disse para eu relaxar? Relaxe! Deixe seu marido entretido com o trabalho dele, eu te levo até a sua casa.
- Só se aceitar um bolo.
- Eu aceito, muito honradamente. Quer ouvir música coreana? Então ouça...
4 comentários:
Boa Noite querido Amigo !!
Nanael, eu sempre acreditei que ensinar fosse auxiliar o educando a superar suas limitações, e jamais rebaixar o nível do aprendizado a estaca zero.
Tal actitude repercute de forma negativa no aprendizado. E muito !!!
O Brasil precisa priorizar e de facto investir na qualidade do ensino e da saúde, com urgência.
Se os discursos das autoridades têm realmente valor, porque continuar a sucatear duas molas mestras do desenvolvimento de uma Nação, como Educação e Saúde ?
Óptimo post Nanael!!!
Namasté amigo querido !!
Com carinho e aromas de rosas...
Lilly Rose
Estou encarnando o papel do chato e recebendo os devidos tomates por isso, mas é uma tecla em que todos os blogueiros deveriam tocar à exaustão.
Dizem as más línguas que os chineses "imitam" os japoneses quando emigram, mas aqui pode-se dizer que os coreanos tem demonstrado estarem mais próximos aos judeus. No meu bairro, que é historicamente vinculado à comunidade judaica, já se vê uma quantidade significativa de coreanos. A propósito: http://www.skdynamics.com/download/HEV_2Pg_A4_RevA5.pdf
Bom saber, Kamikaze, até porque isto combina um pouco com a cultura sul-coreana.
Obrigado pelo link, foi muito proveitoso e me acendeu as idéias de gerico de costume.
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