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Sempre foi a meretriz mais discreta e, pasmem-se alguns, mais elegante da região, mais elegante do que a maioria das esposas dos figurões envolvidos. Eles não podem alegar nada, deram azar de a imprensa estar lá, transmitindo ao vivo uma matéria sobre acidentes na rodovia, onde fica a região dos motéis.
Mas não importam os figurões, os deputados, o capitão da polícia, a desembargadora que hoje se sabe ser lésbica, o eminente e moralista empresário, nem o pastor com gosto por garotões tatuados. Nos importa Anna Elisa de Albuquerque Silva e Lima, a Téia, como é conhecida.
Um juiz que foi socorrer a colega, após uma conversa com o delegado, concluiu que Anna era a única em condições de falar sem constrangimentos, e os policiais já disseram que é de confiança...
- Então, meritíssimo, como eu já disse ao delegado, estava livre naquele momento e presenciei tudo. Estou à disposição da justiça para os devidos fins.
- Óptimo. Primeiro, quanto à minha colega de fórum...
- Ela está limpa. Ela e a outra moça encontraram o vereador por acaso e a esposa dele as confundiu com amantes.
Continuam com o depoimento, a moça impressionando pela fluência, pela eloquência e pela vasta e profunda cultura que demonstra. Já de manhã, após o juiz ter gentilmente retribuído a cooperação com um desjejum a três, passam para ela a coroa do tópico...
- Os policiais me disseram que você é enfermeira, é verdade?
- Sou. Sou formada em enfermagem pela UFG e tive pós-graduação trabalhando com o Exército.
- Uma pessoa com as suas qualificações (me perdoe se pareço preconceituoso, não sou ) não consegue uma boa colocação no mercado de trabalho?
- Não. Na verdade eu não estou nesta vida tanto por mim, mas pelas pessoas das quais eu cuido. Sou voluntária em um asilo de idosos e eles precisam do dinheiro que ganho desta forma.
- Compreendo. Vida dupla então.
- Já me falaram disso, por alto, mas a diferença entre o que você ganharia em um hospital e o que ganha tolerando esses canalhas é tão grande? Porque eu sei do asco que vocês sentem, as suas colegas já me relartaram.
- O asilo é uma instituição de caridade, depende muito das verbas estatais, que são escassas e burocratizadas. Eu já tentei sair da prostituição, mas enfrentei resistência e até ameaças. Aquele deputado, do Partido da Moral Ilibada, ameaçou fechar todas as portas se eu não o servisse mais. Com o que ganho supro parte do que a ajuda oficial não cobre. Eles usam medicamentos caros, é uma barganha para que tenham um mínimo de dignidade.
- Por que não o denunciou?
- E quem acreditaria em uma meretriz, delegado? Agora, pego com a boca na botija, talvez ele seja punido, mas mesmo assim eu temo pelo que ele pode fazer com o asilo. Ele pode acreditar que foi armação minha e impor represálias.
Os dois se olham, infelizmente não têm poderes para impedir isto, é outra alçada. Já viram prostitutas que usavam da profissão para angariar fundos e mover recursos para causas nobres, mas este caso é mais interessante ainda, ela fala do asilo como de uma família. Tem um filho de pai desconhecido, fruto da profissão...
- Não, nunca abortei. Conheço a maioria das garotas, quase todas já abortaram, mas eu tenho um código de ética muito rígido. Fiz uma promessa na formatura. Mas no meio já é algo banal, se nós mesmas somos banalizadas, coisificadas.
- Mesmo sendo... desculpe.
- Tudo bem, delegado. Eu estudei o corpo humano durante o curso. O facto de o feto não ter um cérebro formado não significa que ele não seja uma vida, plantas não têm cérebros. A maioria só quer mesmo se safar das conseqüências de seus actos; comer o peixe sem molhar a patinha, como se diz. Há uma diferença de um óvulo e um esperma para um embrião, são aqueles os ingredientes para este se formar.
- Você é contra o aborto?
- Sou, meritíssimo. Mas deixo claro, contra o aborto, não contra a mulher que se vê obrigada a abortar. Sou adulta, não confundo as coisas. Matar uma criança para antecipar a próxima relação não é uma "conquista da mulher", é tornar natural eliminar uma pessoa que lhe seja incoveniente. Ninguém se torna mais emancipada com isso.
- Mesmo com a ciência dando brechas...
- Se eles ousarem admitir que um óvulo fecundado é uma vida, logo terão que admitir que o cérebro não é a pessoa, que existe algo mais e teriam que deixar seu orgulho materialista de lado. Eu poderia ter conseguido um emprego na faculdade mesmo, mas entei em atrito com um ateu radical e um fanático fundamentalista, ambos gente influente lá dentro.
- Ouça, eu vou ser sincero... Estou escrevendo um livro sobre a minha magistratura e vou acabar aproveitando essa sua história...
Conversam e ela aceita passar na residência do juiz, com a família toda adulta já presente, para continuarem a conversar a respeito.
Após os serviços no asilo, e ter que correr à emergência com um velhote que não viu o desnível da escada, ela chega à casa do magistrado. O belo rosto a faz ser reconhecida, mas o vestido médio cinturado, a maquiagem leve, os cabelos em rabo-de-galo e a enorme bolsa feminina destoam do que ele viu no dia anterior. Como ele advertiu, o nível cultural dela consegue constranger. Reiniciam a conversa, em uma varanda à sombra de um bougainville de flores amarelas, com suco de melancia e petiscos...
- Os homens geralmente preferem seus prazeres às suas necessidades. Conheço casos de meninas que foram para a prostituição após serem estupradas pelos pais e expulsas de casa pelas mães. Para esse tipo de homem, é necessário que alguém vá par a sarjeta, para que eles se sintam bem. Esses homens querem que a prostituição continue existindo, mesmo que para isto alguém tenha que amargar um sofrimento pelo resto da vida.
- Foi o seu caso?
- Não. Eu sou órfã, nunca conheci uma família. Mas fui muito bem educada no orfanato. Aprendi tudo de que precisei para me virar até me formar, mas depois todas as portas se fecharam e eu tive que apelar para o sexo.
- Quem fechou as portas?
- Desafetos. Gente que teve seu orgulho ferido. Como eu já disse, eles preferem o prazer à necessidade, e o prazer pode ser muito bem ver o inimigo na lama.
- Olha, no seu caso então se deram mal, porque você tem uma dignidade difícil de encontrar. O que você faz no asilo, exactamente?
- Tudo. O que for preciso eu faço. Sou uma provedora.
- Então é esse o peso que essas ameaças têm. Você não tem medo de vir a faltar por causa de alguma doença, ou um atentado? Sabe que essas regiões ermas são perigosas.
- Se eu tivesse escolha, eu a faria. Mas as pessoas que poderiam ter ajudado, preferem pagar cem reais por um rápido rogasmo a dez reais por hora para alguém ajudar os outros. Não falta dinheiro no mundo, se faltasse, a prostituição não seria tão próspera. Para seus egoísmos o homem tem dinheiro. Como o sujeito que gasta o salário na bebedeira enquanto a família tem que se virar com os vencimentos da mãe, que quase sempre ganha menos, ainda que faça o mersmo trbalho.
- Mas você não demonstra ser amarga, ou infeliz com avida que leva.
- Não tenho tempo pra isso. É muita gente dependendo de mim para eu me preocupar com a crueldade do mundo e as injustiças do sistema. Sim, por causa disso já me tacharam de alienada, de pelega, mas é gente que nunca estendeu a mão para quem precisa, só para os do seus grupos. Mas já disse que não tenho tempo para isso, as retóricas ululantes de protesto contra ou a favor do governo não vão abastecer a despensa e a pharmácia do asilo. Ideologistas então, nunca contei com eles.
- Olha, nos meus trinta anos de juiz eu nunca tinha visto isso. Essa sua atitude é rara. Você não gosta do que faz, isso já deixou claro.
- Quase ninguém gosta do que faz, mas todo mundo precisa viver. Eu procuro ser discreta, não ponho anúncios nos jornais, não participo de eventos afins, embora mingue meus ganhos isto preserva o asilo de assédios. Não é pra mim que eu trabalho, se fosse só por mim eu me viraria numa banquinha de camelô. Mas as pessoas doam pra caridade, em um ano, menos do que gastam em uma noite de cervejada. Sabe aquela frase "Se for pedir pão, ninguém tem um tostão, mas se for pedir cachaça tens amigo em toda praça"? É a mais pura verdade.
A família ao redor apenas ouve. Alguns ficam constrangidos com a carapuça justa. Dão uma nota das menores à cestinha da igreja e ainda pedem troco, mas nada é caro o suficiente para os amigos em um bar. Pararão de pedir troco. Tomam um ponto menos tenso, falam de sua "condição como mulher"...
- Sou feminista até certo ponto. Houve uma distorção do que é o feminismo, o azedume tomou conta de algumas de tal forma, que até parecem homens. E quase me batem quando eu digo isso. Houve tamanha repressão no passado, que tem gente querendo recuperar os milênios de abstinência de suas ancestrais numa vida só. Certa vez, uma mulher em um carro me disse que invejava minha profissão, porque eu ganho a vida com orgasmos. Ela saiu tão decepcionada quando eu contei o que é realmente ser prostituta! Eu falei do nojo, dos maus tratos, dos sujeitos que acham que eles é que deveriam ser pagos de tão gostosos que se acham. Mulher ainda é objecto para os homens, e muitas estão vestindo a carapuça como se realmente servisse direitinho.
- Mas você concorda que sexo é uma necessidade natural.
- Discordo categoricamente. Sexo é uma imposição genética para fins de reprodução. Só que hoje não precisamos mais nem nos tocar para assegurar a continuidade da espécie. Sexo é necessário à vida selvagem, não à civilização. O dia em que as mulheres passarem a ver o sexo como artigo supérfulo, então sim o feminismo dirá a que veio.
Todos engolem seco. Agora entendem porque seu pai fez questão de que estivessem presentes à visita. As saídas para a balada ficam para outro dia, querem ver até onde a conversa vai...
- Sexo traz prazer, vontade de viver, et cétera.
- O "obrigado" que costumo ouvir de meus velhinhos me dá prazer, me encoraja a continuar vivendo mesmo nas condições em que vivo. Se for isto o argumento, então não preciso dele. E antes que toque no assunto, conheço casais que estão há muitos anos sem sexo e vivem muito bem, com maturidade.
Agora a esposa do juiz é quem dá um sorriso largo, ele terá doravante que compreender quando ela não estiver disposta. Já parou de ler certas revistas que chegavam a dar dicas de como se tornar insaciável, para ter sucesso com os homens. Toca o celular de Anna, é o tal deputado exigindo sua presença, para aliviar a humilhação pela qual passou. A moça fica constrangida, tensa, depende deste contacto, mas o juiz se adianta e pega o aparelho...
- Aqui é o juiz Vasconcelos e vou te dar voz de prisão se me desacatar de novo. Ouça que direi uma única vez, ela está em um depoimento seríssimo e o senhor está todo enrolado. Tenho aqui gente da polícia federal anotando tudo em um lap-top. Tenha a certeza de que meus colegas do Tribunal Superior Eleitoral receberão o material, então vê se não complica ainda mais pro seu lado. Tá anotando tudo aí, Lúcia?
- Via Skype, pai. O Ministro está ouvindo tudo.
- Essas tecnologias novas me assustam. Está avisado. Anna, eu vou te fazer uma proposta. Tenho um conhecido que inspira cuidados. Ele tem um belo patrimônio, é antigomobilista renomado, mas a viuvez fez muito mal a ele. Casa com ele. Ele pode dar conta sozinho do asilo e você poderá se livrar dessa vida de que não gosta. Ele tem a saúde frágil, precisa de uma esposa-enfermeira e quando conversamos na delegacia... Desculpe, eu já tinha a intenção de bancar o cupido e acho que você é a mulher ideal para ele.
- E a família?
- Cada um pegou a sua parte na herança e nunca mais deu notícias. É gente como essa que você descreveu. O Gaspar adopta o seu filho, tenho certeza. Vocês dois na casa dele vão vazer o que os remédios não fizeram.
Chamam o dito-cujo, que mesmo tossindo pela bronquite, chega dirigindo um Buick LeSabre 1971, azul marinho, de capota baixa. Um nheco-nheco de vez em quando é o máximo que ele pode pedir, em termos de sexo. A figura assaz interessante da moça o anima e o cara-de-pau sem-vergonha notório apronta das suas, a agarra, leva um tapa, agarra de novo e a beija, faz o pedido e ela aceita. é o tempo de o edital sair nos jornais e a cerimônio civil, simples e rápida, comemorada em uma pizzaria com o menino, se dá.
Um ano e nasce uma menina, mais um e a sede própria do asilo é providenciada. Sem humilhações, sem riscos, sem ter que barganhar migalhas em troca de submissão sexual.
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