28/10/2010

O tio rude

Era um homem rude, de modos simples, péssimo gosto para roupas e sem jeito para meias-palavras. Ofendia sem querer, e quando queria ofender era como uma coral verdadeira.
Generoso como raros, entretanto, tinha dificuldades para discernir quem era amigo ou inimigo. Na dúvida, atacava. Geralmente se arrependia em pouco tempo, mas o remendo acabava se tornando pior do que o próprio estrago.

Tudo começou ainda na juventude, quando um bando de espanhóis atacou gente de sua família, que fazia serviços e testes na fazenda de um mexicano. O bando era temido e dava de ombros para qualquer que fosse a reação, queriam era dar uma lição da qual o mexicano jamais esqueceria, não importando a quem atingissem. E atingiram gente que nada tinha a ver com a história.

Se havia uma cousa que o homem rude não tolerava era ser agredido. Ele foi ter com a turba arrogante, depois mandou notícias do massacre, pois não restou um para contar vantagem à Espanha. O homem voltou de alma lavada, embora o luto e a tristeza pela perda estúpida tivesse deixado um trauma difícil de superar, ainda mais em uma época de recursos escassos e caros. O rosto alvo estava constantemente rosado pelas lágrimas que derramava quase todos os dias.

Na tentativa de defender os seus, acabou se tornando um vizinho incômodo, que vigiava todos ao redor e queria satisfações de qualquer actividade suspeita. Olhou demais para fora e não se deu conta que perigos maiores cresciam dentro de casa. Foi manipulado e acabou tendo seus princípios mais caros subvertidos pelos que defendia. Era gente mimada, que inventava qualquer frase de efeito ou rótulo sério para justificar seus fins, bem como seus meios, fossem quais fossem.

Com o tempo, a saúde daquele homem rude foi sendo corroída pelos remorsos e pelos lutos sucessivos, aos quais não sabia como colocar fim. Acreditava estar sendo bem assessorado pelos seus, mas quanto mais trabalhava, mais dificuldades amargava. Não entendia como as negociações que encomendava não surtiam efeito, o que sempre culminava em mais agressões, e ele se via obrigado a revidar.

Não percebia que em sua casa a cultura do trabalho árduo e honesto estava perdendo os encantos. Ser culto e útil estava perdendo espaço para a esperteza. Estavam deixando de trabalhar pelas necessidades para agir em prol de interesses. E o velho a trabalhar incessantemente, minando ainda mais a sua saúde.

Certa feita, uma sobrinha muito sábia lhe pediu para deixar de agredir os vizinhos, que assim talvez o vissem com melhores olhos e lhe poupassem a saúde. Inúmeras vezes ele já demonstrara ter bom coração, embora uma cabeça dura com miolo mole, ao acolher gente de fora como se fossem filhos. Mas a invigilância doméstica acabava gerando tensões, os que já estava lá se achavam mais iguais do os recém-chegados. A sobrinha sábia alegava com insistência metódica e diplomática, para que tentasse modificar seus actos. Ela não descansou, enquanto cuidava do tio, até convencê-lo a pelo menos tentar. Com o passar das décadas ele concordou, mas avisou que não toleraria interpretarem isto como sinal de fraqueza, ainda não confiava nas pessoas de fora. Uma contradição para quem se acostumou a acolher gente estranha para festas esquisitas. Mas ficou acertada a tentativa.

O porém é que ele já não sabia mais viver em paz, estava há tanto tempo tão tenso, que este passou a ser seu estado natural. Confiou aos seus mais velhos a condução desse plano. Justo eles, que eram mais neuróticos do que o velho e, se pudessem, mudariam a fazenda para outro planeta, desabitado, para não precisarem temer vizinho algum. Impuseram a paz na marra, com todas as contradições correlatas.

Os anos se passaram e o velho tio mantinha a promessa, mas estava doente e acamado, raramente saía, geralmente só em dias de festa, quando todos se arrumavam e se davam as mãos. Ele, com problemas de visão, não notara que sua família estava a cada dia mais desalinhada, obesa, com modos cada vez mais grosseiros e vocábulo cada vez mais limitado. Apenas confiava e voltava para sua cama, abatido e em prantos pelos lutos e remorsos que cresciam a cada dia.

Joanna voltou um dia desses. Não reconheceu nada, absolutamente nada. Os parentes, antes laboriosos e prestativos, estavam indolentes, gordos, obcecados pelos próprios prazeres e sem qualquer confiança no futuro. Ela adentrou na fazenda e foi ao celeiro. Vazio. Duas ou três sacas de grãos e um pouco de queijo, nada mais do que isso. As cercas estavam derrubadas, as plantações muito mal cuidadas, o moinho funcionando precariamente, os animais ao deus-dará, enfim, a Fazenda Liberdade estava o próprio retrato da decadência. Aquilo mais parecia um brejo do que uma fazenda, em nada lembrava a propriedade organizada e próspera de outrora.

Em um canto ela viu alguns primos rindo e contando algo. Eles a viram e tremeram, era uma das poucas pessoas contra a qual absolutamente nada poderiam fazer. Estavam especulando e contando os ganhos da especulação, tinham convencido seus irmãos de que trabalho honesto é para os trouxas, que gentileza é para maricas, que deveriam terceirizar tudo e pagar misérias para os outros trabalharem. Engoliram sêco ao verem seus olhos faiscando...

- Então vocês conseguiram. Paquidermes inúteis! Pústulas desvairados, vocês estão acabando com tudo!

Tentaram se explicar, mas a obesidade e o peso da especulação lhes tolhia argumentação e movimentos. Puxou a todos pelos colarinhos e mostrou as conseqüências de sua irresponsabilidade juvenil. Gente de fora, ressentida, depredava tudo enquanto eles ganhavam incitando os outros à agressão. Ninguém estava trabalhando como outrora, ninguém estava tentando ser gentil como aconselhara. A verdade logo emergiu e soube que haviam sabotado as tentativas, convenceram o tio de que ser pacífico era o mesmo que ser inactivo e deu no que deu. Ela correu desesperada à casa grande, subiu aos aposentos do tio e o viu combalido como nunca...

- Oh, tio! Eu pedi que não agredisse, não que não impusesse respeito!

- Eu não sei fazer isso, Joanna. Sou um velho burro e grosseiro. Agora já estou nas últimas e...

- Pára com isso! Vocês está doente, é só isso. Mas também, com esse ar saturado não tem como ficar são!

Abriu as janelas e as portas tolas do seu quarto, deixando sol e o mundo entrarem. Minutos bastaram para o velho conseguir respirar normalmente, sem corisa, sem embargos vocais. Conseguiu se levantar, mas quis voltar ao leito quando viu a paisagem desolada. A fazenda organizada e próspera tinha se transformado em um amontoado de bichos e plantas aleatoriamente distribuídos, de modo que fazia parecer que cada um tinha tomado para si parte do que deveria ser coletivo, aguçando os olhos percebera que realmente era isso mesmo. A gente bonita e elegante, que até em cadeira de rodas dava gosto de ser vista, então era uma piada de péssimo gosto daquilo que já fora. Viu ao longe pessoas estranhas invadindo e correndo de volta, assim que conseguia fazer algum estrago, sabiam que batendo de frente seriam dizimados sem esforço. Então alguém olhou para cima e balbuciou "T-t-t... Tio!!!!", e todos fizeram o mesmo. A vergonha e o medo diante do olhar severo de reprovação do velho Samaritano eram maiores do que podiam esconder. Ele os fitou por tão longos minutos, que alguns não percebiam a frouxidão de seus intestinos. O velho respirou fundo contando até dez e foi o mais educado que conseguia naquele contexto...
- TODOS DE VOLTA AO TRABALHO!!! AGORA!!!!!!!!!!!!!

Era uma lástima ver aquelas figuras disformes tentando tirar seus corpos acomodados da inércia. Uns fracos pela anorexia, outros tentando vencer as centenas de libras inúteis acumuladas na gordura, outros ainda as travas que a preguiça impusera. O velho estava decepcionado. Nunca esperou que fossem santos, mas tampouco que se atirassem no abismo do egoísmo com tamanha volúpia. Olhou para a sábia sobrinha, que então lhe dava carta branca, apenas aconselhando que cuidasse também de si. Ele concordou e perdia rugas a cada palavra decidida que proferia...

- Eles vão ver. Esta fazenda voltará a ser o que era e melhor! Se é de disciplina que precisam, eu tenho um trem inteiro para dar a cada um deles.

Os músculos se tonificavam a cada passo e Joanna se alegrava. Pôs os pés para fora pela primeira vez em quase um século, vendo todos tentando arrumar o estrago. Deu ordens expressas, avisou que deveriam deixar tudo como estava para só depois pensar em melhorias, e que passaria a vistoriar tudo pessoalmente. Nem que leve mais um século, porá tudo nos trilhos novamente.

Alguns chegaram a pensar que estivesse morto. Voltou para dentro, ajudar a sobrinha a arrumar a casa, ao som de uma vitrola que há muitas décadas não ouvia.

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