03/09/2010

fazer o quê?


Em sua cobertura faraônica, no edifício de sua propriedade, este cercado de imóveis que adquiriu após a mudança de vida, o ex-traficante conversa com o juiz que o tinha condenado. Durante a maior parte dos anos de cárcere, queria matá-lo lentamente, talvez abrindo-lhe feridas e o jogando no meio de formigas carnívoras. Mas depois que o próprio juiz o chamou para uma conversa em particular, os interesses sobrepujaram o ódio e tudo mudou de figura. À beira da piscina, os dois conversam...

- E pelo que vejo o seu patrimônio com dinheiro limpo é bem maior do que antes.

- Nem me fale! Como eu perdi tempo! Ganho em um ano mais do que eu acumulei durante todos os anos de tráfico.

- Fora que não tem mais certos gastos.

- É verdade. O que eu gastava com advogado era uma loucura. Aliás, aquele sacana que sempre me mandava mais clientes...

- Perdeu o registro de advogado. Até para um advogado de porta de cadeia existem limites, e o seu ex advogado passou por cima de todos.

- O desgraçado me iludia pra eu atacar com mais raiva e me foder mais.

- E precisar mais dele, para pagar mais honorários, enfim... Mas ele terá muito tempo para pensar nisto.

- Está na mesma cela?

- A mesma que você ocupava.

- Vendo aquela vista linda?

- Não. Tem muito mais gente querendo fazer churrasco dele, o muro foi elevado. Ele só vê tijolo.

Tomam uma taça de vinho branco doce, para aliviar o calor, este que se despede aos poucos. O juiz, macaco velho, sabe que o ex-detento não se converteu para a ordem dos anjos celestiais, então pede que seja sincero, sem compromissos nem risco de represálias...

- Sinceramente?

- Pode falar. Quem está aqui agora é um amigo, não o magistrado.

- Falou. Eu não saí um centímetro da lei, juro... Nem preciso.

- Como assim?

- Doutor, antes eu ganhava dinheiro fácil do modo mais perigoso. Me envolvi com o tráfico internacional, matei pelo simples prazer de apostar pra que lado o infeliz cairia, lavei dinheiro de metade dos políticos do país e de muitos do exterior. Só não trafiquei órgãos porque o risco de o cliente morrer antes do transplante e não pagar, é maior do que vale. Se tiver mesmo outra vida, eu tô lascado.

Bebe outro gole, enquanto pensa e mede as palavras...

- Só que eu não fiquei bonzinho. Eu era traficante, hoje sou banqueiro. Posso te garantir que as diferenças são bem poucas, a maioria meramente ornamental. Banco, principalmente no Brasil, vive da desgraça alheia, que nem eu na minha antiga vida. Eu não obrigava ninguém a começar a usar drogas, mas fazia tudo quanto é artimanha pra convencer os filhinhos de papai que só seriam machos se encarassem a barra. É a publicidade do submundo, funciona. Para sair, se eu soubesse que estava tentando sair, ameaçava a família inteira de morte pra obrigar o cara a continuar se drogando, ou só comprando, tanto fazia pra mim.

- E hoje?

- Hoje eu não obrigo ninguém a assinar um contracto. Mas já viu a nova campanha do meu banco?

- Sim, é maravilhosa, diga-se de passagem. O publicitário está de parabéns.

- Obrigado, o publicitário sou eu mesmo. Usei minha experiência e a agência traduziu para o mercado financeiro. Eu convenço o cidadão honesto e ansioso por resolver seus problemas, de que o meu banco é a solução. Notou que as pessoas entram (na propaganda) meio curvadas em minhas agências e saem altivas, radiantes? Até a iluminação sobre elas muda. É psicologia, doutor. Eu uso de psicologia para convencer o cliente a colocar uma corda no pescoço com as próprias mãos.

Existem muitos termos que são próprios de cada ramo, e no mercado financeiro não é diferente. São termos e gírias esquisitas que só nós entendemos, mas que existem há décadas e são fluentemente faladas pelo grupo. O que fazemos é entupir os contractos com esses termos e suas abreviações, porque alguns são quilométricos, e damos para o cliente ler à vontade.

- E ele não entendendo, cai.

- Cai. Feito um pato. O cidadão não é economista, assim como não é engenheiro, não é médico, enfim. O cidadão médio é um idiota, que em vez de ler e ouvir o que vai lhe fazer diferença, perde tempo com bobagens apelativas que matam um neurônio atrás do outro. O povo é uma massa imbecil que raciocina com o baixo ventre, a presa lenta e suculenta que nem percebe que está sendo vampirizada. Quando alguém chega a ganhar uma ação contra nós, pagamos com o maior prazer. Primeiro porque o decorrer dos trâmites legais dá tempo para eu ganhar mais do que a indenização pedida, e com o dinheiro do reclamante; segundo porque isto não arranha sequer o verniz da nossa imagem, os outros clientes continuam caindo feito patinhos.

- Mas há advogados que conhecem muito bem o ramo.

- São poucos. No Brasil são poucos. Mesmo os que conhecem não conseguem muita agilidade nos processos, os nossos advogados batem na tecla eficaz de que o cliente levou o contracto e teve o tempo que quis para lê-lo. Até levamos outros clientes, quase sempre amigos nossos, com conhecimento de causa para demonstrar que uma pessoa comum consegue entender os termos, se estiver disposta a pesquisar um pouco.

- Mas ninguém pesquisa.

- Não, quase ninguém. O brasileiro é acomodado, trabalha com as mãos e não usa a cabeça, ou não teríamos mais bares do que escolas e bibliotecas no país. Muitas vezes o próprio cliente desiste da ação, se convencendo de que a culpa foi dele e não nossa. O que eu faço como banqueiro é parecido com o que fazia como traficante. Só que antes a polícia tinha o dedo no gatilho pra estourar a minha cabeça, hoje a polícia me protege. Antes eu tinha que mandar meus filhos pro exterior, pra não terem o mesmo fim que eu dava ao filho dos outros, hoje eles viajam pra estudar, passear, aproveitar a vida. Eu andava com um carro blindado, que não chamasse atenção, e duas escoltas armadas até os dentes, hoje eu ando em um carro ainda blindado, mas vistoso e só com o motorista me acompanhando.

- Mas não me consta que os clientes do seu banco costumem ir à falência.

- Eu disse que as diferenças são bem poucas, não inexistentes. Por que vou querer que o cara perca a casa e vá pra debaixo da ponte? O que ganho com isso?

- A casa.

- Pensamento primário. Eu endivido o sujeito pelo resto da vida. A não ser que ganhe na loteria, ele nunca consegue pagar os juros e as centenas de serviços embutidas. Leva tempo, mas o que ele me paga é quase sempre mais do que vale o que foi dado como garantia. Nós só cobramos pra desestimular o calote, pra fazer o cara aceitar uma renegociação. A gente percebe quando ele está cambaleando, não sou burro como os outros bancos, que matam a galinha dos ovos de ouro. Quero o cliente cativo, me rendendo dividendos, mas dormindo direito. Se a família dele passar fome, eu não ganho.

- E a inadimplência?

- A gente chora de barriga cheia, doutor. Está para nascer povo mais honesto e prestativo do que o brasileiro. O povo paga, nem que tenha que ficar sem uma das refeições do dia. Choramos para atingir os brios do povo honesto e trabalhador, que não quer ser comparado aos poucos caloteiros, que nós conseguimos acionar facilmente.

O juiz, já em vias de se aposentar, se pergunta o quanto já pagou sem perceber. Um centavo de cada cliente, explica o banqueiro, gera uma fortuna por dia, fora o resultado das aplicações com esse dinheiro...

- Não se engane, doutor, eu continuo não valendo nada, só que agora não represento mais perigo à sociedade. Por efeito colateral, eu gero dezenas de milhares de empregos directos e outros tantos indirectos. Por mim tudo bem, estou ganhando, é o que me importa. Mas voltar para aquela vida irresponsável e desnecessariamente perigosa de traficante, não, de jeito nenhum.

- E os seus antigos comparsas?

- São mais burros do que eu supunha, na época. Preferem uma vida de "emoção", de "adrenalina", de "poder"... Rá, ra, ra, ra, ra, ra, ra... Quer mais emoção e adrenalina do que esportes radicais? Amanhã te levo pro autódromo, tenho uns carros de corrida e o doutor vai ver o que é adrenalina de verdade. Quer mais poder do que ter montes de políticos no bolso? Eles são imaturos, são adolescentes de caras enrugadas, não entendem quando é hora de parar de fazer masturbação política e passar para as núpcias com o poder.

- Quer dizer, dá pra ser sacana dentro da lei.

- Ô se dá! É até mais fácil. Antes as pessoas me viam com vontade de me matar, hoje me vêem como fonte de inspiração. Porque, justiça se faça, eu ralei. Sacaneei, mas ralei para ser sócio majoritário deste banco. Eu mereço estar onde estou.

O juiz concorda, fazer o quê?

2 comentários:

Anônimo disse...

Saudade, Nanis! A imagem que ilustra seu texto é do Shag, um artista muito bacana, já montei expo dele.
Abraço do Fábio!

Nanael Soubaim disse...

Saudades, fiote. Escolhi a imagem pelo sarcasmo elegante e sessentista que Shang constuima deixa explícito... para quem sabe interpretar. Tem como arranjar umas photographias da exposição?